Novos conhecimentos poderão ajudar o governo a gerir os recursos hídricos e a preservar as montanhas.
Numa aldeia em Checacupe, na região sul de Cusco, nos Andes peruanos, costumava haver uma cerimónia para preparar uma lagoa glaciar para recolher água, disse Richart Aybar Quispe Soto, funcionário de um hospital local. Era um ritual que reverenciava o apusos espíritos das montanhas e da água, disse ele.
“Na aldeia da minha mãe”, disse ele, “o riacho glaciar, que chamamos mayucha em quíchua, não desce mais da montanha.”
Agora, uma nova investigação mostra que os glaciares e a água na região central, mais próxima da capital do país, Lima, poderão enfrentar um destino semelhante.
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Até 2050, a cordilheira central dos Andes poderá perder entre 84 a 98 por cento dos seus glaciares, prevê o estudo. Ao analisar sete imagens de satélite para determinar mudanças na cobertura glacial de 1990 a 2021 e desenvolver um mapa de projeção baseado em características e índices climáticos para identificar áreas mais suscetíveis ao recuo glacial, pesquisadores da Universidade de Engenharia e Tecnologia do Peru descobriram que um desaparecimento total é esperado para 2056. Seus resultados foram publicados no mês passado no Journal of Water and Climate Change.
“Temos que nos adaptar ao facto de que os glaciares, dentro de 50 ou 100 anos, irão desaparecer”, disse Pedro Rau, hidrólogo que liderou o estudo. As geleiras em altitudes mais baixas são particularmente vulneráveis, disse ele.
O Peru possui cerca de 68% das geleiras tropicais do mundo. Estes são normalmente divididos em três seções: norte, centro e sul. As geleiras na cordilheira norte dos Andes peruanos foram extensivamente estudadas devido a desastres naturais anteriores, como o terremoto Ancash de 1970, que desencadeou uma avalanche.
Na faixa sul, ao redor de Cusco, receberam mais atenção internacional, devido ao significado cultural das geleiras. Mas as geleiras da região central, mais perto de Lima, não foram estudadas no mesmo nível.
Agora, os investigadores desenvolveram o que descrevem como um mapa de projeção espacial para 2021-2055 para compreender qual a percentagem de perda de glaciares que devem esperar – e o que isso significa em termos de acesso à água.
No Peru, as geleiras são um recurso hídrico estratégico para a população do país e, especificamente, para as comunidades andinas, afirma o estudo.
Cerca de 20 milhões de peruanos se beneficiam de alguma forma da água que desce das geleiras, de acordo com um relatório governamental de 2023. Não se trata apenas da quantidade de água, explicou Moschella, mas da qualidade da água. Na Cordilheira Branca, na cordilheira norte, há um nível de água mais ácido devido à água que corre através de rochas expostas anteriormente cobertas por geleiras, segundo o relatório do governo.
A perda de geleiras afeta milhões de pessoas em Lima e, ainda assim, é difícil de entender porque as geleiras estão distantes, explicou Rau, ao contrário de Cusco, ou da cordilheira norte, onde pessoas como Quispe Soto cresceram muito mais próximas das geleiras. Mas no final, disse ele, “ainda é um problema nacional”.
Estudos anteriores concentraram-se na compreensão da perda e da dinâmica dos glaciares, mas este novo estudo centra-se na projeção e mapeamento das condições futuras dos glaciares. Ao utilizar estes mapas, os investigadores são capazes de compreender as regiões mais afetadas pela perda de glaciares, ajudando a tomar melhores decisões em torno da gestão dos recursos hídricos.
Embora as geleiras não sejam comumente associadas ao clima tropical, as geleiras podem ocorrer em regiões onde existem altas cadeias de montanhas nos trópicos, como os Andes. Apenas algumas regiões do mundo ainda possuem geleiras tropicais devido à sua sensibilidade às alterações climáticas. Nas latitudes mais baixas, a duração do dia não muda muito ao longo do ano, por isso os glaciares tropicais tendem a derreter a um ritmo mais rápido, sem uma pausa sazonal do sol.
A velocidade a que os glaciares tropicais no Peru estão a derreter é “alarmante”, afirmou um estudo publicado em 2019. Na verdade, o Peru perdeu mais de metade dos seus glaciares tropicais nos últimos 60 anos, de acordo com um relatório governamental publicado em Outubro.
O derretimento no Peru faz parte da aceleração global do declínio dos glaciares e das calotas polares, com a taxa de perda de gelo quase a duplicar para 1,3 biliões de toneladas por ano desde a década de 1990 e a acelerar a subida do nível do mar, mostraram pesquisas recentes. Como resultado, ao ritmo atual do aquecimento global, o nível médio global do mar subiria 1,2 a 1,5 metros até 2100, afirma um estudo de 2022.
O novo estudo se soma ao conjunto existente de pesquisas sobre a perda de geleiras peruanas, bem como a novas pesquisas sobre regiões vulneráveis e previsões.
“Esses tipos de estudos contribuem para o nosso conhecimento de cenários futuros”, disse Paola Moschella, diretora de pesquisa sobre geleiras do Instituto Nacional de Pesquisa de Ecossistemas Glaciais e Montanhosos (INAIGEM) no Peru, que não esteve envolvida no estudo. O instituto supervisiona o monitoramento das geleiras em nível nacional e concentra-se principalmente na perda histórica de geleiras e na avaliação de riscos. Esses tipos de estudos realizados por pesquisadores de fora do instituto ajudam os pesquisadores a compreender as projeções futuras das geleiras, explicou Moschella. Eles também ajudam a aumentar a conscientização sobre como as consequências da perda de geleiras, como a falta de água, irão se intensificar, disse ela.
Em regiões como Cusco, houve um aumento alarmante na escassez de água nos últimos dois anos, com o governo alertando para uma falta iminente de água potável ao longo de 2023. Rau, o autor do estudo, também fez parte de uma equipe de pesquisadores internacionais em um projeto em Cusco, que teve como objetivo compreender e monitorar melhor a perda de geleiras e a segurança hídrica.
Para pessoas que sofreram com a falta de água, como Quispe Soto, a perda de glaciares é alarmante em muitos aspectos, e não apenas em termos da água como recurso, mas no significado dos glaciares como parte da religião e da cultura. Ele teme que seu filho não experimente as geleiras e a água como ele.
“Quando meu pai me levou às geleiras quando criança, tudo era branco”, disse ele. “Hoje só existem pedras pretas.”