Fauna das Profundidades Marinhas

Maria João Correia
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Embora seja ainda um domínio pouco conhecido, as grandes profundidades oceânicas albergam grande diversidade de formas de vida, que nos espantam pelas extraordinárias e singulares adaptações ao meio inóspito que habitam.

No início do século XIX foram obtidas algumas das primeiras provas da existência de vida a grandes profundidades. Estas observações foram realizadas por Sir John Ross, em 1818, durante a sua viagem para encontrar a passagem, por noroeste, entre o Oceano Atlântico e o Pacífico, tendo recolhido, a cerca de 500-600 braças de profundidade, um conjunto de animais invertebrados. Em Portugal existem publicações da Real Academia de Ciências de Lisboa, datadas de 1815 e 1818, sobre a costa do Algarve, relatando a existência de pesqueiros localizados a 400 braças, onde os pescadores operavam com sucesso, bem como a ocorrência de vários seláceos entre 350 e 550 braças. Apesar destes registos, a comunidade científica rejeitou, até meados do século XIX, a existência de vida nas grandes profundidades marinhas. A prova definitiva da existência de organismos vivos abaixo de 300 braças surgiu em 1859, quando foi levantado, para reparações, o cabo telegráfico que unia a Sardenha ao norte de África, proveniente de 1800 m de profundidade, e onde foram encontrados corais solitários e moluscos.


Abaixo da plataforma continental, a partir dos 150 a 200 m até às máximas profundidades conhecidas, ou seja, cerca de 11 000 m (fossa das ilhas Marianas), encontra-se o mundo das grandes profundidades marinhas. Embora constituam o maior biótopo existente no nosso planeta, estas zonas são também as menos conhecidas, sendo a sua investigação muitas vezes comparada à conquista do espaço.

As características morfológicas e anatómicas dos organismos que vivem a grandes profundidades, bem como a sua fisiologia e distribuição, são diferentes daqueles que se podem observar mais próximo da superfície do mar, devido às condições ambientais aí existentes. A falta de luz e ausência de vegetais, as baixas temperaturas e elevada pressão são as condições dominantes do meio profundo.

Figura 1 – Bloco esquemático dos principais acidentes topográficos do fundo do mar.

A natureza dos sedimentos pode condicionar a composição da fauna dos fundos marinhos profundos. Regra geral, são constituídos por substratos móveis de grão fino, ocorrendo em algumas zonas areia e afloramentos de rocha, geralmente vulcânica. Relativamente à temperatura, habitualmente apresenta valores entre 0,5 e 4ºC.

A baixa temperatura e a pressão elevada (que pode atingir 1100 atmosferas) são dois factores fundamentais na regulação dos processos fisiológicos dos organismos, condicionando a distribuição vertical das espécies e intervindo, consequentemente, nos processos de selecção natural.

Os dados existentes sobre as espécies das zonas profundas dizem fundamentalmente respeito à macro e megafauna (animais de dimensões superiores a 2 mm), registando-se uma elevada diversidade de espécies, assemelhando-se muitas vezes às dos biótopos terrestres mais ricos.


É na vertente continental que aparecem os primeiros grupos de animais tipicamente profundos, como esponjas Hexactinellidae, holotúrias da ordem Elasipoda, peixes da família Macrouridae, além de numerosas espécies também caracteristicamente profundas pertencentes a grupos zoológicos existentes nas camadas marinhas mais superficiais. Nos afloramentos rochosos da vertente é possível encontrar corais brancos pertencentes a diversas espécies, aos quais se associam numerosos poliquetas, tanto errantes como sedentários. De entre os crustáceos característicos da vertente continental ressaltam os cirrípedes, sendo ainda bastantes abundantes, embora não características, as galateas. Também abundantes nesta região são os ofiurídeos e os crinóides que, ao contrário dos moluscos, são apenas representados por algumas espécies de bivalves.

Figura 2 – Invertebrados e cordados característicos da vertente continental: (1) esponja do género Hyalonema; (2) holotúrias Elasipoda; (3) o macrorídeo Coelorhynchus coelorhynchus [38 cm].

A homogeneidade faunística que caracteriza globalmente a vertente continental permitiu definir um andar designado por batial. A transição dos povoamentos batial para os povoamentos chamados abissais situa-se a cerca de 3000-3500 m de profundidade. Aqui é possível encontrar, para além de esponjas e holotúrias, algumas espécies de ascídeas e equinodermes, bem como uma grande quantidade de cefalópodes e peixes.

Figura 3 – Fauna característica do andar abissal: (1) uma ascídia carnívora Megalodicopia hians; (2) o peixe Aristostomias tittmani [21,5 cm]; (3) o peixe Linophryne coronata fêmea [219 mm], o macho é parasita da fêmea [26 mm].

As comunidades abissais estendem-se até cerca de 6000-7000 m, profundidade a que ocorrem sensivelmente as fossas abissais, e cujo domínio faunístico forma o andar hadal. Nas fossas abissais nota-se um empobrecimento da fauna relativamente à planície abissal. Muitos dos grupos zoológicos bem representados no andar abissal, como os crustáceos decápodes, os pantópodes, os cefalópodes, as estrelas-do-mar e os peixes, desaparecem no andar hadal. Nas comunidades hadais predominam as holotúrias, os pogonóforos, os equiúres e ainda algumas espécies de poliquetas. As bactérias barófilas, que apenas podem viver a pressões superiores a 600-700 atmosferas, podem ser consideradas como características do andar hadal.


A vida no meio profundo originou várias respostas, a nível adaptativo, por parte dos organismos. Aqueles que vivem fixos nos substratos móveis apresentam geralmente pedúnculos bastante longos, enquanto alguns crustáceos e outros animais possuem um alongamento dos apêndices, assegurando, simultaneamente, uma melhor sustentação e um aumento das possibilidades de percepção sensorial.


Diversos animais das profundidades não possuem olhos, ou estes são vestigiais. Em contraste com aqueles, outros há que apresentam olhos bastante desenvolvidos. Os fenómenos de bioluminescência, outra característica de diversos grupos animais do domínio profundo, como protozoários, cnidários, crustáceos, cefalópodes e peixes, podem ser produzidos por órgãos luminosos (como no caso dos peixes) ou por fotobactérias que vivem no produto da secreção celular.

 

 

Figura 4 – Muitos peixes apresentam órgãos luminosos (fotóforos) dispostos ao longo do corpo (setas a negro). (1) Myctophum nitidulum [83 mm]; (2) Argyroppelecus hemigymnus [39 mm].

Relativamente à reprodução e ao desenvolvimento das espécies profundas, dada a escassez de alimento, a protecção dos jovens ou das posturas, a viviparia e um curto estado larvar, podem ser factores determinantes na sobrevivência das espécies.

Outra adaptação à vida a grande profundidade é o dimorfismo sexual, levado ao máximo pelos peixes ceratióides, cujos machos, de pequenas dimensões e anatomicamente atrofiados, vivem presos à fêmea e são parasitas desta.

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