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A propósito de Almada Negreiros, jardins e crianças

João Bugalho

Almada Negreiros foi um dos mais notáveis artistas portugueses do século XX. Dê uma espreitadela num pequeno texto que escreveu, revelador da sua enorme sensibilidade e que agora faz todo o sentido associar ao Festival de Jardins de Lisboa.

Como foi noticiado, vai realizar-se de 5 a 8 de Abril próximo, o primeiro Festival de Jardins de Lisboa, na Tapada da Ajuda. Um dos objectivos que se pretende atingir com esse evento, é o de contribuir para a sensibilização das escolas, dos professores e das crianças para os jardins, para a jardinagem e para as respectivas potencialidades pedagógicas. Através do jardim é possível despertar a atenção dos jovens, ou mesmo dos adultos, para o cultivo e vida das plantas e, através destas, para diversos aspectos da maior importância na Natureza. Da observação, cultivo e admiração das plantas no jardim é mais fácil saltar-se para o conhecimento destes seres vivos e para a sua importância no mundo em que vivemos. E daí para o aprofundamento e debate de alguns dos mais importantes problemas de conservação da natureza e do ambiente no mundo contemporâneo.


Fotografias de José Romão
 

Pela sua sensibilidade, pela capacidade de verem aquilo para que os outros apenas olham, por verem mais cedo, por sentirem mais profundamente, os artistas distinguem-se, de um modo geral, dos seus concidadãos. Com frequência conseguem transmitir sinteticamente e pela emoção o que os cientistas têm mais dificuldade em exprimir pela razão. É, aliás, interessante observar as correntes contemporâneas que apontam para uma maior e progressiva aproximação entre a arte e a ciência, no sentido da compreensão da essência das coisas e dos fenómenos que nos rodeiam, segundo aproximações diferentes, mas desejavelmente cada vez mais convergentes.

Entre os artistas portugueses do século XX, Almada Negreiros foi seguramente um dos mais notáveis, pela sua permanente irreverência, pelo sentido crítico apurado, pela inteligência perspicaz e impar criatividade. Mas também por uma infinita sensibilidade. Vem transcrito um pequeno texto de Almada na “Colectânea de Textos Literários”, publicada por iniciativa do IPAMB e do Instituto Superior de Agronomia, no âmbito do projecto O Mundo Rural e a Conservação da Natureza, que parece ser bem revelador do que se afirma. E sem dúvida que apela ao mesmo tempo para a importância de ensinarmos as nossas crianças a olhar para as flores!


 
Por isso o transcrevemos, deixando que o leitor o saboreie:

A flôr 
 
Pede-se a uma criança. Desenhe uma flôr! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há ninguém.

Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase não resistiu.

Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais.

Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: Uma flôr!

As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flôr!

Contudo, a palavra flôr andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flôr, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas, são aquelas as linhas com que Deus faz uma flôr!
 
Almada Negreiros
A Invenção do Dia Claro

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