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As Artes num Jardim

Cecília Martins, ARTLINK

Envolto por uma bela paisagem, onde o rio Tejo é senhor, O Chão das Artes está já de portões abertos na Casa da Cerca, em Almada. Pela primeira vez no nosso país, um jardim botânico reflecte a ancestral ligação entre Natureza e Artes Plásticas.

No topo do terreno amplo, contíguo à Casa da Cerca, o grande porte de um dragoeiro concentra o olhar de quem ali entra. O seu futuro, ameaçado pelas obras que iam realizar-se no seu local de origem, na zona de Almada, ficou garantido quando a autarquia da cidade decidiu transferi-lo para este Centro de Arte Contemporânea. O acontecimento poderia ter passado despercebido, se não tivesse acelerado a concretização de uma ideia inédita em Portugal: a de criar um jardim botânico que reflectisse a relação entre as artes plásticas e a natureza.

Produtor do sangue de draco, uma resina vermelha muito utilizada pelos pintores, o dragoeiro é apenas uma das muitas espécies vegetais que, desde 9 de Junho, podem ser descobertas no “O Chão das Artes”. Após três anos e meio de trabalho, este jardim botânico, com cerca de cinco hectares, está agora aberto ao público, oferecendo aos visitantes uma abordagem original às artes plásticas - ao contrário do que é comum, a proposta não parte do produto final, mas dos elementos naturais que, ao longo dos tempos, estiveram na base de técnicas e materiais plásticos, interferindo por isso, directa ou indirectamente, na prática dos artistas.

Além da chegada do dragoeiro à Casa da Cerca, a vocação deste espaço para as actividades artísticas e a área disponível no exterior foram outras circunstâncias que favoreceram a criação do jardim. O projecto custou 250 mil contos, foi co-financiado pela Câmara Municipal de Almada e por fundos comunitários do Plano de Reabilitação Urbana, e envolveu os esforços de uma bióloga e de dois arquitectos, um dos quais paisagista.

 

Cristina Coelho, a jovem bióloga desta equipa, que foi responsável pela pesquisa necessária à escolha das espécies, salienta o apoio de entidades externas: o Jardim Botânico da Universidade de Lisboa; no campo histórico, o Instituto Português de Conservação e Restauro, e o departamento de conservação e restauro, que funciona na Universidade do Monte da Caparica. Mas a ajuda veio ainda da própria Casa da Cerca, através dos seus historiadores de arte e de Rogério Ribeiro. O então director do Centro foi um dos artistas plásticos que colaborou nos estudos de cor do Jardim dos Pintores.

A estreita articulação com a Casa da Cerca deverá, de resto, continuar. O horário de funcionamento é o mesmo e as iniciativas que irão animar O Chão das Artes serão planeadas em ligação com os eventos do Centro. É que a actividade não terminou com a abertura ao público. Muito pelo contrário. Como nos explica Cristina Coelho, «um dos grandes objectivos é o trabalho pedagógico com a população de Almada e com as escolas, do ponto de vista quer da conservação, quer da questão ambiental e da sensibilização para as artes plásticas». Para aproveitar todo este potencial, estão a ser programadas visitas guiadas, jogos de exploração e ateliers que possibilitem aos destinatários relacionar-se realmente com o local e conhecer os seus materiais e espécies. «A ideia é que as pessoas façam esse jogo e, em seguida, realizem, no pequeno laboratório que temos, algumas daquelas “velhas alquimias” da extracção dos pigmentos, dos óleos, por aí fora…», adianta a bióloga. 
 
Outros planos para o futuro, já a nível científico, são a criação do herbário, cujas instalações estão ainda em construção e que deverá servir como pólo de investigação do jardim, e de um banco de sementes, para trocas com outros jardins botânicos. Mas há ainda a tentativa de trazer para o jardim novas espécies, como o indigo, proveniente da Índia, e utilizado para fazer diversas tonalidades de azul, e a acácia da goma arábica, proveniente do Norte de África, e usada desde a Antiguidade como diluente, inclusivamente na escrita egípcia. «Penso que esta é a espécie que vai ser mais trabalhosa, porque é exótica, difícil de encontrar, e de trazer em viagem, mas é uma espécie que não podemos deixar de incluir aqui pela importância que teve na história da escrita e da pintura.», comenta Cristina Coelho.

Pioneiro no nosso país e possivelmente no estrangeiro, como levam a crer, para já, os contactos estabelecidos pela sua equipa, O Chão das Artes vai precisar de cerca de 15 anos para atingir todo o seu esplendor. Até lá, e enquanto as árvores não crescem, a paisagem continuará dominada pelo imponente dragoeiro, a árvore que Hieronymus Bosch, o pintor flamengo dos séculos XV e XVI, escolheu para embelezar o seu “Jardim das Delícias”.

 

 

De Jardim de Quinta de Recreio a Jardim Botânico

O jardim tradicional português de uma quinta de recreio, que a Casa da Cerca foi outrora, inspirou a estruturação d’ O Chão das Artes. Os três principais núcleos em que estava dividida a zona de cultivo anexa ao edifício setecentista – o horto, a mata e o pomar – continuam a existir, acolhendo árvores, arbustos e flores que foram seleccionados a partir de um vasto leque de escolhas possíveis.
«Fomos à procura de referências a material de origem vegetal nos receituários e nos tratados de pintura antigos, como o do italiano Cennino Cennini, o de Filipe Nunes ou o de Leonardo Da Vinci.», explica Cristina Coelho. «Numa outra vertente, procurámos na etnobotânica, isto é, nas espécies botânicas de uso comum, as que poderiam realmente dar origem a materiais empregues na realização artística». Para além das espécies «muito óbvias», como as plantas tintureiras, as gomas e as resinas, foi difícil, em certas situações, identificar a origem exacta do material, ou saber de que material se falava. O sangue de draco, por exemplo, é frequentemente confundido com o sangue de dragão, outra resina de propriedades semelhantes, que não resulta do dragoeiro, mas de outra espécie, proveniente da Malásia. Valendo-se de edições comentadas e dos seus conhecimentos científicos, Cristina Coelho entrecruzou todas estas informações e submeteu-as a outros dois critérios: a frequência de utilização das espécies nas artes plásticas e as condições climatéricas do local, particularmente batido pelo vento e pelo sal.

O contacto com as espécies que agora crescem junto à Casa da Cerca é proposta ao visitante através de um percurso, que pode começar logo pelo dragoeiro. À sua volta foi plantada a mata do jardim, com outras árvores resinosas, como o pinheiro bravo, as píceas e os abetos, cuja resina é a principal fonte de essência de terebentina, um solvente usado pelos pintores desde a Antiguidade. Mas há também castanheiros, carvalhos e faias, aqui incluídos por serem grandes fornecedores da madeira utilizada em esculturas ou como suportes de painéis, retábulos e telas.

 

Descendo em direcção à estufa, sucedem-se pequenos jardins. O dos óleos traz-nos o linho, a alfazema, o rosmaninho, o girassol e a papoila. As suas sementes eram prensadas para obter óleos diversos, usados de acordo com o efeito pretendido: o óleo de papoila, espessante, para realçar as pinceladas (foi por isso muito empregue pelos impressionistas); ou, com a finalidade oposta, o óleo de linhaça, extraído das sementes do linho, que é o mais utilizado e que confere fluidez às pinceladas e permite diluir o pigmento do modo uniforme. Um pouco mais abaixo, no Jardim das Telas, o linho volta a estar presente, ao lado do algodão, duas espécies fibrosas muito utilizadas para construir as telas. De uso mais raro, o cânhamo foi também incluído aqui pois, devido ao comprimento da sua fibra, permitia suster as telas antigas de grandes dimensões.

Perpendicular a estes pequenos jardins está outro grande núcleo d’ O Chão das Artes. É o Pomar das Gomas, formado sobretudo por espécies frutíferas: cerejeiras, amendoeiras e pessegueiros, às quais os artistas recorriam para obter a goma necessária a diversas técnicas de pintura, perante a dificuldade em encontrar goma arábica.

Seguindo não a via dos materiais, mas a da influência da natureza sobre as obras pictóricas, encontramos o Jardim dos Pintores. Esta área é a mais rotativa de todas (as espécies são anuais e bianuais) e destina-se a reconstituir ambientes naturais que marcaram o imaginário de nomes de diferentes períodos da História da Arte. Para já, foi escolhido o pintor impressionista Claude Monet (1840-1926), de quem se evocam os jogos de cor, através de dálias, girassóis e amores-perfeitos.

 

Ao longo do jardim existem ainda pequenos canteiros, onde o visitante se depara com plantas tintureiras, como o açafrão, ou ainda com uma figueira, cuja inclusão no jardim Cristina Coelho justifica: «na pintura a têmpera, para facilitar a ligação do ovo com o pigmento, colocavam-se uns rebentos jovens de figueira que exsudavam um látex que, pelas suas propriedades químicas, tornava a solução mais estável».

Já próxima do edifício da Casa da Cerca, a estufa é o último espaço deste trajecto. Foi concebida para manter as espécies que não conseguem sobreviver no exterior e para acolher exposições, sempre subordinadas à botânica e às artes plásticas. 
 
A Natureza Mestra das Artes

Para assinalar a inauguração d’ O Chão das Artes, a Casa da Cerca mantém patentes, até 20 de Outubro, um conjunto de mostras que homenageia a natureza, e em particular o jardim, como fonte rica e inesgotável de inspiração para as artes plásticas.

Em exposição no piso térreo do Centro de Arte Contemporânea, “Natura Artis Magistra / A Natureza Mestra das Artes” revela ao público os projectos de arquitectura e de arquitectura paisagista do jardim botânico, e uma cronologia ilustrativa dos maiores jardins de toda a história, desde os lendários Jardins Suspensos da Babilónia, do século V a.C., até ao Parque de Esculturas de Kröller-Müller, na Holanda, datado de 1961. Também com carácter ilustrativo, incluindo reproduções de obras-primas e breves textos de contextualização, segue-se uma abordagem ao simbolismo de quatro temas intimamente ligados à Arte e à Natureza: as árvores, os arbustos e herbáceas, as flores e as cores.

Se a influência dos elementos naturais nas artes plásticas existiu ao longo dos séculos, ela foi particularmente marcante no naturalismo e no romantismo, através da pintura de paisagem. Por isso, no primeiro piso, “O Elogio da Natureza” apresenta telas de pintores portugueses representativas dessas correntes. As obras foram cedidas pela Sociedade Nacional de Belas-Artes e pelo Museu do Chiado, e dão a conhecer, nomeadamente, os cenários românticos de Cristino da Silva e os do naturalista José Malhoa.

No âmbito científico, os visitantes da Casa da Cerca podem ver, na estufa do jardim, a mostra documental “No Trilho dos Materiais”, sobre as espécies presentes n’ O Chão das Artes, e ainda, na cisterna da casa, desenhos de botânica realizados por Pedro Salgado, um dos autores nacionais de ilustração científica de maior destaque na actualidade.

 

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