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A história dos resíduos

Isabel Palma

No início da história da humanidade, a natureza coletora e nómada do Homem não originava uma acumulação significativa de resíduos. No entanto, quando os humanos começaram a permanecer no mesmo local durante períodos mais longos tornou-se evidente a necessidade de encontrar soluções para a eliminação dos resíduos. 

As alterações no estilo de vida requerem ajustamentos no comportamento humano. Contudo, quando os humanos começaram a permanecer no mesmo local por períodos mais longos as adaptações de comportamento não surgiram imediatamente pelo que começou a ocorrer uma acumulação de resíduos. Este foi um dos problemas que as primeiras comunidades sedentárias tiveram de enfrentar.

Por volta de 500 a.C. Atenas organizou a primeira lixeira municipal no mundo ocidental e houve indivíduos que ficaram responsáveis pela deposição dos resíduos a pelo menos uma milha das muralhas da cidade (scavengers). Esta ação foi repetida noutras cidades com vários avanços e recuos de acordo com a capacidade e vontade dos governantes. 

A deposição em lixeiras, queima, transformação em novos produtos (mais tarde definido como reciclagem) e minimização da produção de resíduos (redução na fonte) são métodos básicos utilizados ao longo da história com diferentes dimensões e evoluções. Apesar da essência destes métodos ser bem conhecido a primeira tendência continuou a ser a simples eliminação.

Escavações arqueológicas nas habitações da antiga Troia revelaram que a maior parte do lixo era mantido dentro de casa, ficando calcado no barro do chão ou empurrado para os cantos e ao longo das paredes, conforme o padrão de movimentos dos seus habitantes.

O arqueologista C.W. Blyer ao examinar ruínas de Troia da idade do bronze descobriu que o chão dos edifícios estavam cheios de artefactos e ossos de animais. Para eliminar estes resíduos a solução mais utilizada era colocar uma nova camada de barro para os tapar. A certa altura, o chão ficava tão alto que era necessário levantar o telhado e reconstruir a porta de entrada. Através das escavações arqueológicas é possível observar uma clara estratificação do chão dos edifícios da antiga Troia. Os resíduos orgânicos maiores, colocados na rua, eram comidos por cães e porcos semi-domesticados. A prática de lançar os resíduos para a rua tornou-se bastante comum e permaneceu até quase à atualidade.

Os scavengers transportavam os resíduos inorgânicos para a periferia das áreas urbanas onde eram deixados em pilhas (estrumeiras) ou queimados. Em troca, detinham o direito de venda de artigos que encontrassem no lixo.  

Ao longo dos tempos, as habitações eram demolidas e as paredes passavam a ser as fundações dos novos edifícios. Como resultado, as cidades antigas do Médio Oriente elevaram-se relativamente aos terrenos envolventes. 

Os Maias também depositavam os resíduos orgânicos em lixeiras a céu aberto. De acordo com os arqueológos, os locais de deposição de resíduos deveriam sofrer explosões ocasionais pela formação e acumulação de gás metano. A queima de parte dos resíduos libertaria o espaço para a deposição de mais resíduos no mesmo local.

As cerâmicas partidas e outros objetos inutilizados eram utilizados em novos projetos de construção. Desta forma, esta civilização já demonstrava uma preocupação com a reutilização de matérias-primas. Também eram adeptos da redução da produção de resíduos. 

Após o ano 1200, reduziram a utilização de cerâmicas ricas e ornamentos corporais especialmente nos rituais fúnebres. Deixaram de cremar os mortos com cerâmica intacta, ferramentas e joias e em substituição utilizavam objetos que já estavam danificados. Esta alteração de práticas levou a grandes poupanças de recursos escassos ou dispendiosos. 

Em 1388 o parlamento inglês baniu o despejo de resíduos nos diques e cursos de água devido à interferência dos mesmos no normal fluxo de água. Em 1400, quando a pilha de resíduos fora de Paris era tão alta que interferia com a defesa da cidade, foi publicado um regulamento que obrigava todos os indivíduos, que transportassem areia ou pedras para a construção, a transportar igual carga de resíduos ou esterco quando saíssem da cidade. Estes exemplos mostram uma vontade dos governos agirem em matéria de resíduos para evitar problemas associados à saúde pública e segurança. 

Nos Estados Unidos da América, foi instituído o primeiro serviço municipal de limpeza das ruas na cidade de Filadélfia, decorria o ano de 1757. Foi também nesta altura que os americanos começaram a enterrar os seus resíduos em vez de os lançarem para a rua. 

Com a Revolução Industrial, parte da população dos meios rurais migrou para as cidades e os padrões de vida e de consumo dos cidadãos alteraram-se significativamente. Como resultado houve um aumento exponencial da quantidade e diversidade de resíduos produzidos e aumento da poluição em geral: ar, água e solos. 

O problema tornou-se especialmente grave quando a acumulação de resíduos em baldios sem qualquer controlo passou a estar associado ao aparecimento de patologias. Após as novas descobertas científicas na área da saúde iniciou-se no fim do século XIX e início do XX, o desenvolvimento de muitos serviços de saneamento incluindo a recolha de resíduos domésticos. 

Contudo, algumas medidas adotadas para melhoria de processos conduziram elas próprias ao um aumento da quantidade de resíduos produzidos. Quando William Stewart, o chefe da cirurgia do hospital Jonh Hopkins em 1893 começou a utilizar luvas descartáveis para prevenir infeções começou naturalmente a criar mais lixo. 

O aumento das hipóteses do governo em matéria de gestão de resíduos levou ao aparecimento de abordagens mais sistemáticas como a incineração. Em Inglaterra, o primeiro “crematório” surgiu em 1874, em Nottingham e, nos Estados Unidos, a primeira incineradora municipal americana foi construído em 1885 na ilha do governador, em Nova Iorque. Por volta de 1914, existiam nos Estados Unidos e Canadá cerca de 300 incineradoras. Contudo, a maioria rapidamente desapareceu devido aos custos e poluição associados. 

Nesta fase surgiram as tecnologias de redução/reciclagem. A redução, técnica baseada na indústria baleeira, consistia na cozedura dos resíduos orgânicos e animais mortos para produção de gorduras utilizadas na fabricação de sebo, cosméticos e outros produtos, alguns dos quais utilizados como adubo. A poluição dos cursos de água e o cheiro nauseabundo levaram ao encerramento de muitas destas instalações, após várias décadas em funcionamento.

Os primeiros aterros sanitários foram desenvolvidos em 1920. Eram construídos em terras secas e os resíduos depositados em células tapados periodicamente com terra. As lixeiras a céu aberto ainda permanecem nos dias de hoje, na maior parte dos países do terceiro mundo. No Egipto os indivíduos que transportam e reaproveitam o lixo são conhecidos como zabaline e no México como penenadores. Estes grupos são sindicalizados e poderosos. Apesar desta prática não ser compatível com os padrões sociais desejáveis, representam um dos sistemas de reciclagem e recuperação de materiais mais minuciosos e bem-sucedidos do mundo, rival de qualquer esquema de reciclagem montado nos países ocidentais. 

A incineração regressou e manteve-se até aos anos 50 e 60 do século passado até ser associada a problemas respiratórios dos cidadãos e pelo seu impacte na paisagem. Com a crise energética, as incineradoras reconverteram-se e passaram a ser designados como “resource-recovery facilities”.  

Apesar das maiores preocupações com os resíduos estar associada à saúde pública também os seus impactes ambientais começaram a ser considerados. Uma expansão rápida da compreensão dos impactes a longo termo da poluição dos solos e da água e o conceito de escassez de recursos naturais levaram a uma maior regulação da prática de eliminação dos resíduos. A incapacidade dos governos locais lidarem com estes grandes problemas da sociedade levou a um interesse dos governos centrais e a necessidade de atribuição de responsabilidades.

A crescente consciencialização ambiental da população colocou as incineradoras novamente na mira. Contudo, com o aumento da produção de resíduos, a falta de espaços para a deposição e o síndrome NIMBY (“Not in my backyard”) o problema dos resíduos agravou-se e a incineração sofre nova transformação passando a ser considerada uma forma de valorização energética (“waste-to-energy”). 

A partir deste período os governos passaram a investir mais na gestão de resíduos para alcançarem soluções mais eficazes para o problema. A reciclagem como opção técnica da gestão de resíduos urbanos teve início nos finais da década de 60, nos Estados Unidos e no centro e norte da Europa. Nesta altura, vários municípios iniciaram programas e campanhas de recolha selectiva de determinados resíduos. Foram desenvolvidos vários esquemas de recolha selectiva porta-a-porta, sistemas colectivos e sistemas centralizados. 

Em 1970, Gary Anderson desenvolveu nos Estados Unidos o símbolo da reciclagem atualmente reconhecido em todo o mundo. 

Nos últimos anos, as grandes inovações científicas e tecnológicas no campo da gestão de resíduos possibilitaram a criação de novas empresas e mercados de produtos e serviços. 

A complexidade da gestão de resíduos não está apenas associada à grande quantidade de resíduos produzidos actualmente mas também à sua diversidade. A diversificação dos produtos oferecidos aos cidadãos traduziu-se na produção de resíduos com características distintas tanto a nível dos materiais como da sua toxicidade. A matéria orgânica que representava a maior componente dos resíduos urbanos passou a ser substituída por embalagens, papel e cartão. 

O aumento da taxa de produção dos resíduos e a evolução das políticas de ambiente tornaram inaceitável a simples deposição dos resíduos em lixeiras a céu aberto sem qualquer tipo de tratamento ou controlo. 

Surgiram assim os sistemas de gestão de resíduos que englobam operações de recolha, transporte, armazenagem, tratamento, valorização e eliminação de resíduos às quais estão associadas diferentes infraestruturas. 

Contudo, tal como as primeiras comunidades sedentárias sentiram dificuldades em adaptar-se ao novo estilo de vida, também agora as nossas políticas de gestão de resíduos que preveem diferentes esquemas de reciclagem implicam ajustamentos de comportamento dos cidadãos que não ocorrem imediatamente. É importante informar a população sobre as alternativas de eliminação de resíduos que têm à sua disposição para que a história continue a evoluir. 

 

Bibliografia:

Rathje, W.; Murphy, C. (1992) - Rubbish! The Archaeology of Garbage, Harper Collins Publishers, New York.

Ruiz, J. (1993). Recycling Overview and Growth. In Lund, H. F. (ed.), The McGRAW-HILL Recycling Handbook. McGraw-Hill. Inc.

 

 

 

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