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A guerra da rolha

Eduardo Gonçalves

O montado de sobro e seus produtos desempenham um papel sócio-económico, ecológico e cultural de excepcional relevância no nosso país. A utilização crescente de rolhas de plástico pode colocar em risco a sustentabilidade deste valioso sistema.

O sobreiro, árvore emblemática e típica da paisagem portuguesa, encontra-se em perigo de extinção. E com ela também a vida rural de regiões como o Alentejo, um sistema agro-silvo-pastoril tradicional, uma paisagem rica em beleza e diversidade biológica, enfim, uma parte inequívoca da história e da cultura nacional.

O montado de sobro é notável pela forma como consegue assegurar a vida das populações, em zonas de clima hostil e solos pobres. É notável, também, pela diversidade biológica que sustenta, impar em qualquer outro sistema agrícola. Mas apesar da sua aptidão como habitat para espécies de fauna e de flora, muitas delas raras ou mesmo ameaçadas, há quem agora queira acabar com ele.


A razão desta situação é a chamada “guerra da rolha”, uma polémica que foi já noticiada nos órgãos da comunicação social. Uma guerra que, como em muitos outros casos semelhantes, tem fundamentalmente a ver com interesses económicos, e não com o bom senso.

Existe, hoje em dia, uma verdadeira campanha de difamação da cortiça, nomeadamente contra uma das suas principais aplicações - as rolhas, levada a cabo por certos grupos económicos poderosos. O objectivo é substituir as rolhas de cortiça por rolhas sintéticas, fabricadas por empresas multinacionais. Há já quem exerça pressão junto dos produtores vinícolas, para que o seu produto venha capsulado por um vedante plástico, como é o caso das grandes cadeias de supermercados ingleses, que controlam o maior mercado global de vinho.

Para tentar convencer os consumidores nestes países a adoptar a “nova tradição” (como eles próprios a chamam), em detrimento das rolhas tradicionais, foi preciso inventar uma série de falsidades para voltar contra a cortiça os consumidores e também, em certos casos, as próprias cadeias de produtos alimentares. São exemplo disso as mentiras sobre os processos de extracção deste produto natural, que dizem implicar o “abate dos sobreiros”, pelo que “as rolhas de plástico são mais ecológicas”. E que os produtores de cortiça - por exemplo, esses agricultores alentejanos, que vivem em casas de taipa, sem luz ou telefone - são “gananciosos”. Mas não se ficam por aqui. Mais grave é afirmar-se que todos os anos “milhões de dólares de vinho fica estragado por causa de uma bactéria da cortiça”. Pelas citações das várias cartas enviadas pelos supermercados ingleses aos seus consumidores (que se encontram entre aspas) pode-se avaliar a veemência desta campanha. 

 O que os supermercados não dizem é que o director da cadeia, que acusa os agricultores portugueses de ganância, levou para casa, o ano passado, uma remuneração de 140.000 contos. Também não dizem que os supermercados não fazem qualquer análise química ao vinho estragado. É claro que a cortiça, como produto natural que é, pode ter alguns defeitos e, de vez em quando, pode ficar contaminada. Mas os laboratórios independentes, que fazem análises ao vinho, afirmam que o chamado “sabor a rolha” é “raríssimo” (outra citação), e que o composto químico que pode provocar este sabor deve afectar menos de 0,5 % do vinho – muito aquém dos 12 %, afirmado por algumas das cadeias.

Os supermercados também não dizem que os seus próprios engarrafadores (também ingleses) não só confirmam estes dados, como ainda reclamam que as rolhas plásticas estragam cerca de 10 % dos vinhos, ou que cientistas franceses, entre outros, descobriram que o sabor a rolha é muitas vezes confundido com problemas com o próprio vinho, que nada têm a ver com o tipo de rolha utilizado. Muitas vezes, a contaminação pelo composto que provoca o sabor a rolha - designado TCA – vem, não das rolhas, mas sim de garrafas sujas ou do armazenamento em caves contaminadas.

O facto dos supermercados terem ocultado estes factos dos seus consumidores ameaça derrubar toda a fileira de cortiça. Enquanto as rolhas plásticas só chegaram ao mercado, em peso, em 1996, hoje em dia já se encontram numa em cada vinte garrafas de vinho, vendidas por todo o mundo. Mas o pior é que se esta tendência se mantiver, daqui a cinco anos elas estarão a capsular quase metade das garrafas de vinho vendidas na Inglaterra, facto que criará fortes pressões noutros mercados importantes em termos mundiais. 

Esta situação irá, certamente, provocar uma queda no preço da cortiça, o que será desastroso para muitos agricultores no nosso país, que naturalmente terão de procurar outras fontes de rendimento. Nos solos pobres e fracos do Alentejo, os candidatos óbvios para ocupar o lugar do sobreiro serão as espécies de crescimento rápido, ou seja, os eucaliptos e os pinheiros, povoamentos para os quais existe já uma forte tendência de crescimento, devido ao aumento da procura dos seus produtos. A ocupação de ainda mais território português por estas espécies só poderá ter consequências negativas, em termos de erosão do solo, dos incêndios florestais, e para determinadas espécies - como o lince ibérico – que já se encontram em vias de extinção. Mesmo que as áreas de montado de sobro fossem simplesmente abandonadas, as consequências seriam praticamente as mesmas, em consequência da invasão destas áreas por mato. A implantação da agricultura intensiva, de regimes de regadio, ou de novos complexos de turismo e urbanização, implicam uma “limpeza”, que certamente seria o fim para o lince e para algumas aves de rapina.

O que agora ameaça complicar ainda mais esta situação para os agricultores é o novo regime de subsídios, integrados no III Quadro Comunitário de Apoio, que privilegia as celuloses no sentido do aumento do co-financiamento de novas plantações de espécies de crescimento rápido e que, ao mesmo tempo, prevê uma diminuição dos apoios a espécies quercíneas. As revisões actuais na chamada “lei do montado” poderão também abrir novas oportunidades para as grandes empresas de construção e empreendimentos turísticos, em zonas hoje ocupadas por árvores autóctones.

Tudo isto ao mesmo tempo que se procura, cada vez com mais urgência, soluções sustentáveis para a gestão dos nossos recursos naturais, soluções para as quais o sistema montado pode servir como um exemplo privilegiado para enfrentar os desafios ecológicos do novo milénio.

O facto é que o valor ambiental do montado já foi há muito estudado, descrito e enaltecido pelos investigadores. É inquestionável a maneira como protege os solos, limpa o ar e conserva os recursos hídricos; a forma como cria condições sustentáveis para a produção de uma vasta variedade de produtos alimentares de alta gama; a maneira como, apesar de ser um sistema produtivo, não só cria, como assegura condições de habitat para espécies como o lince, a águia de Bonelli, a cegonha preta, a geneta, o saca-rabos, entre muitos outros. Valores, aliás, que os consumidores hoje em dia, sobretudo nos países mais desenvolvidos, como a Inglaterra, procuram e desejam nos seus produtos.

Para que a morte lenta do montado de sobro não venha a concretizar-se, é preciso que haja uma resposta coordenada, sobretudo por parte dos que militam as questões ambientais. “Por todos nós” foi a frase da campanha de Jorge Sampaio. É uma frase que estaria perfeitamente integrada neste contexto. O montado português, e a “dehesa” espanhola, absorvem 2 % de todos os gases produzidos na Europa que provocam o efeito de estufa. O lince ibérico é a jóia da coroa de toda a vida selvagem europeia. Trata-se, portanto, não só de uma questão da economia portuguesa, mas também da necessidade de defender um recurso imprescindível a nível europeu. 

É preciso valorizar e promover o que alguns chamam o “mundo do montado”, as suas tradições, a sua beleza, o seu significado ecológico e a vasta gama dos seus produtos, que além de serem naturais e biológicos, são também de alta qualidade. Segundo as sondagens inglesas, algumas das quais realizadas precisamente no contexto da “guerra da rolha”, são estes mesmos valores que os consumidores pretendem, aqueles que o montado tem para oferecer, e que fazem dele um mundo único.

Todos nós teremos um papel importante nesta tarefa, na divulgação da verdade contra a mentira. Todos nós pudemos fazer pressões, no sentido de promover o valor do montado junto dos consumidores, dos políticos e das associações ambientalistas, tanto em Portugal, como no estrangeiro, para que estes também encarem esta questão como uma prioridade.

O montado de sobro é um património de todos nós. E cabe a todos nós defendê-lo. Por todos nós.

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