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Enquanto há vento, há moinho

Sara Otero

Outrora salpicando as paisagens ventosas, hoje em dia os moinhos de vento de produção de farinha são uma raridade. O Sr Vitor Hugo, uma vida de moleiro, contou-nos como vai mantendo em funcionamento uma destas relíquias do mundo rural.

Nem tudo o vento levou. O moinho de vento do Sr. Vitor Hugo, na freguesia de São João das Lampas em Sintra, ficou. Só por teimosia deste moleiro.

Vitor Hugo recebeu-nos de braços abertos, assim também estavam as velas branquinhas do seu moinho. E giravam, giravam, giravam.

Vendo o moinho a trabalhar surpreende a sua beleza. Branco, caiado, onde não falta a barra azul a fazer de moldura e a adivinhar a cor do céu. Lá dentro, o trigo vai sendo moído, agora só para passar o tempo.

Uns dias passaram a anos

Vitor Hugo não tem idade, porque a vida no campo há muito desenhou o esforço e as privações na face. Cada ruga adivinha talvez um dia com fome “só Deus sabe como era dura a vida no campo”.

O moleiro continua: “Vim para aqui de pequenino. Aqui nasceram-me os dentes e agora estão a cair-me.”

Entretanto, dos 16 aos 40 anos trabalhou no mármore como cantoneiro. Depois trabalhou como moleiro durante 34 anos a pedido do tio que lhe disse que só precisava dele por uns dias. Habituou-se à vida no moinho que já pertencia ao avô do seu avô e passou a ser o moleiro de serviço. “O tempo foi andando e nunca pensei que uns dias passassem a tantos anos.”

Nessa época, o moleiro ficava dia e noite a trabalhar e sempre que houvesse vento havia trabalho para fazer. “Trabalhava-se até poder.”

“Recolhia-se aos agricultores o cereal de porta em porta, com a mula ou macho, e na semana seguinte entregava-se os farnéis com a farinha e recebia-se de volta trigo, milho, cevada, ou o que fosse.” Por cada saco de cereal o moleiro recebia “uma maquia”, ou seja, uma parte da farinha, o que lhe permitia depois fabricar o pão. “Aqui na zona toda as pessoas coziam pão, só não cozia quem não tivesse cereal. Fazia-se pão de mistura, trigo com milho, por exemplo, ou só pão de milho.”


O moinho: uma peça de museu a trabalhar

Vitor Hugo adivinhou o meu espanto. Nunca tinha testemunhado o interior de um moinho a trabalhar. Mas afinal quantos de nós viram um moinho em funcionamento? E as crianças sabem de onde vinha a farinha para fazer o pão, ou pensarão que o pãozinho cresce por um fenómeno de geração espontânea nas prateleiras do supermercado?

Para colmatar estas falhas o moinho foi restaurado há catorze anos pelo Parque Natural de Sintra – Cascais, com a intenção de mostrar às crianças e a quem se interessar como é que antigamente se fazia a farinha.

O moinho tem dois pisos, em baixo a “loja”, e por uma escada muito estreita de pedra chega-se ao piso de cima, onde está toda a brilhante engrenagem que permite moer o cereal. O movimento das velas transmite-se à engrenagem interior através do mastro e é assim que as mós de pedra rodam e moem hoje o trigo. Quando este sai já moído em forma de farinha é protegido por um pano branco que está no chão “o panal”. O moleiro explica “a farinha acabada de moer é farinha em rama”, ou seja, integral. Dela se podem retirar através de sucessivas peneiras o farelo, o rolão e a farinha fina.

Pensou-se recentemente poder aproveitar este moinho para a produção de farinha biológica. O problema é que o custo de manutenção e o rendimento não equilibram o baixo preço com que se adquire a farinha industrial.


Fotografias de José Romão

A curiosidade faz girar as velas do moinho

Já há alguns anos que o que faz as velas do moinho girarem é a curiosidade de várias pessoas e escolas que o visitam. Hoje tem uma visita especial, as netas de Vitor Hugo, uma com cinco e outra com oito. Riem, sobem ao moinho e chamam “Oh, Avô. Avô!!!...”. Acenam. Grande agitação.

O filho, serralheiro mecânico de profissão, está doente. Nesta altura, o moleiro robusto como o seu moinho e bem disposto cede. Afinal não é fácil sustentar a família sem o rendimento do fabrico da farinha de outros tempos. Mas, vender o moinho é que não vende. Já lhe ofereceram dinheiro pelo moinho, mas desabafa “não senhor, não vendo o moinho”.

No ano passado, de Março a Novembro todas as semanas teve excursões de turistas, alguns estrangeiros, que nunca viram um moinho. “Se a Câmara paga a jardineiros para arranjar os jardins, porque é que não paga a um moleiro para manter o moinho.” E acrescenta: “Toda a vida tive de pedir esmolas. Estou farto. Se quiserem dar, melhor, senão...”,encolhe os ombros.

“Dinheiro na mão de pobre é sempre pouco”

O sítio é o mais elevado em redor, a confirmá-lo lá está o marco geodésico e o vento sempre a soprar. O vento, maestro sublime, dá o tom, e as velas, músicos experimentados, fazem ouvir a conhecida “música do moinho”.

Daqui ainda se contemplam no horizonte parcelas de terra agora lavrada, dum castanho forte, fértil, que promete boas colheitas, e remotos muros de pedra tão característicos desta região saloia.

Antigamente não havia parcela de terra que não estivesse amanhada. A paisagem era mais bonita. “Mais bonita era, mas melhor não. Os trabalhadores que andavam aqui a cavar estas terras, cavavam tudo. Não ficava nada por cavar, e tinham um quarto de pão por dia para comer. Alguns ainda se viam aflitos para arranjar dinheiro para comprar um quarto de pão. Nessa altura trabalhar era duro como o diabo”.


Fotografias de José Romão

Encarar a realidade como o moinho enfrenta o vento

Agora, novamente descontraído, o moleiro pergunta adivinhando o silêncio: “Sabe porque é que o moinho é redondo? Para pudermos girar o telhado para onde está o vento.” O moinho é orientado consoante a direcção do vento encarando-o sempre de frente.


Assim como sopra o vento também têm sido as ajudas que Vitor Hugo vem recebendo. “Uns anos sim, outros nem por isso.”

Não consegue explicar porquê, mas quase todos os dias visita o moinho. “Trago um saco com pão e uma garrafa com vinho e passo aqui o dia. É aqui que me sinto bem.”

Ao longo dos anos têm sido realizadas diversas reportagens sobre este moinho demonstrando que o interesse e a curiosidade não faltam. Segundo ele “antigamente existiam perto de sessenta moinhos nesta região, agora só restam uma dúzia e só este trabalha.”

Enquanto puder vai encarregar-se de dar vida a uma tradição secular que assim, devido a ele, teima em não desaparecer.

Vitor Hugo até tem um cartão de visita com o qual fomos contemplados, para o caso de querermos voltar. O cartão, simples, com letras azuis como as barras do seu moinho diz: José Vitor Hugo Castro Alcainça – MOLEIRO, morada À-do-Pipo e por aí fora. “Só se não poder mesmo é que não venho” diz-nos o Moleiro.


Fotografias de José Romão

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