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Para quê Alqueva?

Miguel Araújo, Universidade de Montpellier e Universidade de Évora

Qual a racionalidade e sustentabilidade das políticas agrícolas e de desenvolvimento regional associadas à barragem do Alqueva? Que oportunidades se estão a criar e a perder? Merece ser lida, esta reflexão do Doutor Miguel Araújo.

O Alqueva é um somatório de oportunidades perdidas. Das que passaram. Mas mais importante das que estão por vir. Os desafios de hoje já não se restringem apenas às formas de criação e repartição de riqueza entre uma geração. O futuro depende do sucesso com que conseguirmos alcançar níveis de bem-estar que sejam também compatíveis com o direito dos vindouros ao bem-estar. Em todo este processo de construção da barragem do Alqueva, é confrangedora a ligeireza com que se põe e dispõe de recursos e património que temos o dever de bem gerir. Que diremos aos nossos netos para justificar a indiferença com que a nossa geração aniquilou um património que a eles também pertencia? Que diremos para explicar que se preteriu uma análise profunda das opções, possíveis, para desbaratar recursos que poderiam dar frutos, de forma equitativa, a um conjunto vasto de gerações?  

O projecto Alqueva foi lançado na década de 50 com o fito de viabilizar o pólo industrial de Sines. Passou-se o tempo e com ele as oportunidades. O pólo industrial de Sines converteu-se em miragem e Alqueva perdeu a oportunidade. Mais tarde o projecto foi ressuscitado para regar a Reforma Agrária do Alentejo. Da Reforma Agrária pouco sobra e dos agricultores de hoje sabe-se que utilizam menos de 40% das disponibilidades hídricas proporcionadas pelos projectos de regadio existentes no Alentejo. Pergunta-se então quem irá beneficiar do investimento de 300 milhões de contos no plano de rega do Baixo Alentejo? Que raciocínio consubstancia tamanho investimento quando se estima um rendimento anual de apenas 4 milhões de contos a começar entre 2020 e 2030 e se sabe que a duração de vida, média, de uma barragem não excederá os 50 anos? Argumenta-se também com a energia eléctrica produzida. A verdade é que o Alqueva contribuirá com apenas 0,18% da energia produzida em Portugal, estando previsto que uma fatia considerável desta seja consumida na bombagem de água para os canais de irrigação. Estes valores contrastam com o aumento estimado de 3% de energia eléctrica, produzida, se forem investidos 55 milhões de contos no aproveitamento energia eólica em Portugal. Com as nossas 2200 a 3000 horas de sol por ano, é igualmente legítimo perguntar o que se tem feito para aproveitar esta fonte inesgotável e gratuita de energia. Também se fala de Alqueva turístico. Mas pergunta-se: qual o valor acrescentado de uma charca de água, barrenta, num país com uma das maiores linha de costa, por metro quadrado, na Europa?

Estas reflexões são, ou melhor, seriam, importantes num País que preza pela utilização racional dos seus recursos financeiros públicos. Ninguém questiona a necessidade de investimento público, ou a inevitabilidade do desenvolvimento do Alentejo. Questiona-se, sim, a direcção desse desenvolvimento e a forma irreflectida como se gasta o dinheiro dos contribuintes.

Naturalmente que o Alqueva irá trazer benefícios imediatos a alguns concidadãos. Para começar, a indústria da construção civil beneficia. Beneficiarão também alguns especuladores que vêm agora os seus terrenos valorizados pela miragem de um desenvolvimento, que ninguém sabe qual é e a quem beneficiará. É possível que alguma indústria hoteleira se instale nas margens da futura albufeira. Um restaurante aqui, uma pousada ali, um campo de golfe acolá. Mas quem conhece o Alentejo sabe que o seu valor turístico lhe advém das suas cidades, das suas gentes, da sua História e da integridade das suas paisagens. Do ponto de vista turístico o Alqueva é mais uma albufeira num país repleto de barragens.

Mas como diria o outro - "why bother?". Afinal não são os Alentejanos os primeiros a querer o Alqueva? Não são os partidos políticos, da esquerda à direita, parceiros deste Alqueva que se vislumbra no horizonte? Não é este apenas mais um episódio de uso questionável dos recursos financeiros, a somar-se a tantos outros? Que diferença faz que o Alqueva seja um investimento irracional, do ponto de vista da utilização dos dinheiros públicos, se esta é uma miragem tão longamente desejada pelos Alentejanos. Não é o desejo dos eleitores o que confere racionalidade às decisões políticas?


 
 Estes seriam argumentos a considerar se as oportunidades perdidas estivessem apenas associadas ao dinheiro, público, investido em Alqueva. Em democracia é assim. Podem-se gastar milhões em obras de fachada. Se estas contribuírem para reforçar a moral dos Portugueses é dinheiro bem gasto. Mas com Alqueva é diferente. Não se trata apenas de dinheiro mal gasto. São oportunidades de desenvolvimento que se perdem e que dizem respeito a outros. Aos vindouros, isto é, àqueles a quem temos a responsabilidade de entregar um País com iguais, ou melhores, condições do que as que encontrámos. No dia em que expirar o prazo de validade da barragem, que sobrará dos solos empobrecidos, salinizados, poluídos e esterilizados, que suportaram as vicissitudes de uma agricultura intensiva, desenquadrada das potencialidade da região? Que sobrará do que foi, um dia, o esplendoroso vale do Guadiana? Refúgio de um património natural e cultural, irrepetível, que sobreviveu ao passar dos milénios mas que uma geração foi incapaz de lhe reconhecer valor. Quanto tempo será necessário esperar pela regeneração de um Guadiana que nunca mais voltará a ser o mesmo? Perguntas ao vento. Ninguém responde.

Se não houvesse alternativas... Mas elas existem. O Alentejo oferece condições climáticas favoráveis a culturas competitivas no mercado internacional. Quando e como se tem investido na promoção, valorização e comercialização dos vinhos Alentejanos? Os Franceses há muito perceberam que a estreita faixa de clima mediterrâneo que lhes coube seria melhor utilizada para produzir vinho do que para regar morangos. Para culturas de regadio há o Norte onde a água abunda. Quando e como é investido na melhoria da qualidade do nosso azeite e na conquista de novos mercados? O que é feito para apoiar a pecuária e a indústria transformadora de carnes, produzidas em regime extensivo, sabendo-se que numa Europa em alerta devido às vacas loucas, febres aftosas, galinhas com dioxinas, sofrimento animal... estas formas de produção têm mercados cada vez mais receptivos? Porque insistem os sucessivos Governos que o futuro da agricultura no Alentejo é o regadio, intensivo, suportado pelo maior lago artificial da Europa, quando as nossas vantagens comparativas residem nas culturas tipicamente mediterrâneas?


 Decididamente é mais fácil construir paredes e canais de rega do que conceber políticas agrícolas e desenvolvimento regional com pés e cabeça. Temos um País entregue às obras e aos empreiteiros. Façam-se as obras e logo se vê o que fazer delas. Esse é o lema dos sucessivos Governos que encontraram no betão a solução milagrosa para ganhar eleições.


Miguel Araújo

Doutorado em Biogeografia pela Universidade de Londres. Investigador do "Centre National de la Recherche Scientifique" em Montpellier e do Centro de Ecologia Aplicada da Universidade de Évora.  
 

 

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