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O Percurso Evolutivo dos Cetáceos - a Transição Terra-Mar

André Moura – Universidade de Durham

Os Cetáceos foram o único grupo de mamíferos a adaptar-se a um estilo de vida totalmente aquático. Recentemente foram descobertos vários fósseis que documentam este processo evolutivo, tornando-o num exemplo clássico da evolução em curso.

Introdução

Ao longo das eras geológicas, a evolução foi promovendo alterações drásticas que desafiaram o entendimento humano e por vezes geraram grandes controvérsias relativamente à sua possibilidade. Dois exemplos são: o desenvolvimento de membros articulados a partir de barbatanas musculadas nos tetrápodes do Devónico; e mais recentemente, o desenvolvimento de uma locomoção bípede numa linhagem de primatas quadrúpedes no final do Miocénico. Estas alterações permitiram aos grupos biológicos onde elas ocorreram ocupar nichos ecológicos até então inexplorados, e assim garantir o seu lugar actual na árvore da vida. No entanto, uma das transições mais drásticas da história da evolução, parece ter ocorrido como resposta à (re)ocupação de um ambiente “ancestral”... o mar.

Os pensadores e naturalistas da história rapidamente perceberam que os Cetáceos apresentavam uma maior afinidade com animais terrestres como os mamíferos do que com os peixes. Afinal de contas, respiravam oxigénio atmosférico através de estruturas que eram claramente pulmões, além de que bebiam leite na infância e tinham “sangue quente”. No entanto, a noção de que estes animais teriam a sua origem em antepassados inteiramente terrestres permaneceu controversa durante bastante tempo. Quando Darwin (1895) defendeu (com objectivos puramente argumentativos) que ursos que tivessem o hábito de se alimentar de insectos aquáticos (como foi de facto observado) poderiam com o tempo originar um animal como uma baleia, foi bastante criticado por diversas frentes, de tal forma que reformulou a sua argumentação em edições posteriores do seu livro. Ainda hoje, os cetáceos são usados pelo movimento creaceonista americano como prova de que a evolução não é possível. No entanto, nos últimos anos têm sido descobertos vários fósseis de transição que confirmam a origem terrestre dos cetáceos, tornando este grupo num exemplo clássico das modificações que grandes grupos de organismos podem sofrer ao longo da sua evolução.


Posição Filogenética

Devido à sua enorme especialização morfológica, identificar o grupo de mamíferos terrestres mais próximo dos cetáceos sempre foi bastante complicado. Actualmente, é consensual que o grupo de mamíferos mais próximo dos cetáceos sejam os Arctiodactyla, também chamados de ungulados de dedos pares (sendo exemplos a vaca, o camelo, o porco e o hipopótamo). Mais controverso é qual a posição exacta dos cetáceos em relação aos Arctiodactyla, existindo actualmente duas hipóteses concorrentes. A primeira defende que os cetáceos são o grupo irmão (i.e. o grupo com o qual partilha um ancestral comum mais recente) dos Arctiodactyla, e como tal constituem uma linhagem evolutiva independente. Uma segunda hipótese, defende que os cetáceos são o grupo irmão da família dos hipópotamos, sendo como tal, eles mesmo Arctiodactyla (Figura 1.). A segunda hipótese tem sido apoiada por diferentes estudos e tem sido claramente favorecida em relação à anterior, pelo que se tem vindo a adoptar o nome Cetarctiodactyla para se referir à linha evolutiva que inclui os Arctiodactyla e os Cetáceos. 

Figura 1. Duas hipóteses para a posição filogenética dos Cetáceos. A) Os cetáceos partilham um ancestral comum mais recente com os Arctiodactyla (grupo irmão). B) Os cetáceos constituem uma linhagem dentro dos Arctiodactyla, tendo como grupo irmão a família dos hipopótamos (Hippotamidae).

 Todos os membros extintos da ordem Cetacea são colocados na sub-ordem Archaeoceti, e representam um grupo informal que inclui tanto formas terrestres e anfíbias mais antigas, como formas totalmente aquáticas extintas. As famílias cujo conhecimento é mais completo permitem seguir a transição do meio terrestre para o meio marinho, incluíndo a família Pakicetidae, cujos membros são considerados sobretudo terrestres, Ambulocetidae, Remingtonocetidae e Protocetidae, que incluem formas que se tornam cada vez mais marinhas, até às famílias Dorudontidae e Basilosauridae, cujos membros são já considerados totalmente marinhos (Figura 2).

 

Figura 2. Esquema representativo das relações evolutivas entre os cetáceos extintos (Archaeoceti) e os cetáceos modernos.

Os Archaeoceti

Talvez a descoberta mais significativa para a compreensão da evolução dos cetáceos tenha sido a dos Pakicetidae. O paleantólogo que descobriu um dos primeiros crâneos desta família, disse que inicialmente o encarou como um crâneo típico de um Creodonte (um grupo de mamíferos carnívoros agora extinto) excepto na forma do ouvido interno. Este era extremamente semelhante ao ouvido interno que apenas pode ser encontrado nos cetáceos. No entanto, este fóssil tinha sido encontrado em pleno deserto do Paquistão, juntamente com uma grande número de fósseis de mamíferos terrestres . Era a primeira evidência sólida que indicava que os cetáceos tinham tido a sua origem em animais terrestres. Desde a descoberta do primeiro crâneo de Pakicetus, foram encontrados vários fósseis deste género, que permitiram perceber qual seria a sua forma, tamanho, e quais os ambientes em que viviam. É provável que este animal fosse semelhante em forma aos actuais canídeos (Figura 3) e embora fosse terrestre, provavelmente teria um estilo de vida ligado a ambientes dulçaquícolas, alimentando-se de peixe. No entanto, não existem quaisquer evidências de que Pakicetus tivesse alguma relação com o mar, uma vez que nas jazidas deste animal apenas foram encontrados fósseis de pequenos mamíferos e peixes de água doce.

 

Figura 3. Reconstrução de um Pakicetus. Ilustração da autoria de Carl Buell (retirada de http://www.neoucom.edu/Depts/Anat/Thewissen/whale_origins/whales/Pakicetid.html).

Os restantes Archaeoceti são relativamente menos conhecidos, mas permitem relatar a progressiva modificação até aos cetáceos modernos. Pensa-se que os Ambulocetidae eram ainda algo dependentes de ambientes dulçaquícolas, no entanto os seus fósseis são frequentemente encontrados em zonas associadas a ambientes costeiros marinhos, e pensa-se que teriam hábitos anfíbios (Thewissen & Williams, 2002)(Figura 4).

 

Figura 4. Reconstrução de esqueleto de um Ambulocetidae. Ilustração da autoria de Carl Buell (retirada de http://www.neoucom.edu/DEPTS/ANAT/Thewissen/whale_origins/). 

Os Remingtonocetidae e os Protocetidae são talvez os menos conhecidos dos Archaeoceti, mas pensa-se que teriam um estilo de vida semelhante ao das focas actuais. Embora os Remingtonocetidae sejam encontrados apenas em jazigos na Índia, pensa-se que os Protocetidae tenham sido os primeiros cetáceos a sair da bacia indo-paquistanesa e a promover a sua expansão a todos os oceanos, sendo também os mais diversificados dos Archaeoceti . Finalmente, os Dorudontidae e os Basilosauridae são os Archaeoceti mais semelhantes aos cetáceos modernos. Tinham hábitos totalmente aquáticos e alimentavam-se essencialmente de peixes. Os membros posteriores, apesar de presentes, eram bastante atrofiados e não seriam capazes de suportar o animal em terra, e pensa-se que teriam já uma barbatana caudal semelhante aos cetáceos modernos (Figura 5).

 

Figura 5. Reconstrução de um Dorudontidae. Note-se a posição das fossas nasais que é intermédia entre os Pakicetidae e os cetáceos modernos. (Adaptado de National Geographic, Novembro 2001, The Evolution of Whales, por Douglas H. Chadwick, Shawn Gould e Robert Clark. Re-ilustrado para distribuição pública por Sharon Mooney, 2006).

A Transição Terra-Mar

Os Archaeoceti provavelmente reflectem as modificações morfológicas que a linhagem actual dos Cetáceos teve que suportar na sua transição do ambiente terrestre para o ambiente marinho. Desde os Pakicetidae (que representam a forma de hábitos mais terrestres) até aos Dorudontidae/Basilosauridae (que representam a forma de hábitos marinhos) é possível observar a progressiva modificação de estruturas-chave desde uma forma adaptada à vida em terra até à forma actualmente existente nos cetáceos. A mais notória é a migração das fossas nasais desde a extremidade do focinho até ao topo da cabeça. Nos Pakicetidae e nos Ambulocetidae as fossas nasais situam-se no extremo do focinho (Figuras 3 e 4), enquanto que nos Protocetidae encontram-se já acima dos caninos. Nos Dorudontidae, as fossas nasais encontram-se quase acima dos molares, quase a meio caminho entre a posição “terrestre” e a que se verifica actualmente nos cetáceos (Figura 5). Da mesma forma, os dentes foram perdendo as várias cúspides que existiam nos Pakicetidae, tornando-se também progressivamente mais semelhantes entre si, no sentido do que é hoje observado (monodontia, com dentes cónicos simples).

Outras características aparentam, no entanto, ter sofrido uma modificação menos linear. Embora no sentido global os membros posteriores tenham progressivamente desaparecido, alguns Protocetidae possuem-nos particularmente desenvolvidos. Assim sendo, poderá ter ocorrido um maior desenvolvimento dos membros posteriores antes de se ter iniciado a tendência para o seu desaparecimento. Os longos membros posteriores de alguns Protocetidae indicam também que estes talvez fossem os principais orgãos propulsores, à semelhança de uma toupeira-de-água (Gingerich, 2003). Como tal, a locomoção nos cetáceos poderá ter primeiro seguido a tendência de depender exclusivamente dos membros posteriores, e apenas depois terá começado a modificar-se no sentido actual de depender exclusivamente de movimentos verticais da coluna vertebral.

Taxas de Evolução

Um dos aspectos mais interessantes da evolução dos cetáceos, foi a rapidez com que a transição entre os ambientes terrestres e marinhos ocorreu. Estima-se que os Pakicetidae tenham vivido há cerca de 50 Milhões de Anos (MA), e que os cetáceos modernos tenham aparecido há cerca de 30 MA . Ou seja, estima-se que a transição de uma forma maioritariamente terrestre para a forma totalmente aquática tenha demorado aproximadamente 20 MA. Isto é pouco tempo, sobretudo quando comparado com os 30 MA nos quais os cetáceos modernos têm permanecido essencialmente inalterados no que toca às suas características mais específicas. De facto, as taxas de evolução calculadas a partir do registo fóssil, indicam também que estas teriam sido mais elevadas durante o período de transição terra-mar (Gingerich, 2003). Estas observações vão ao encontro de previsões feitas por importantes teorias evolutivas (Darwin, 1895; Fitch & Ayala, 1995), nas quais a transição entre diferentes picos adaptativos seria rápida e caracterizada por elevadas taxas evolutivas, justificando assim a dificuldade em encontrar fósseis de transição entre grandes grupos.

Conclusão

A evolução dos cetáceos é bastante interessante pois relata uma transição drástica, não só em termos morfológicos e adaptativos, mas também na forma como tem sido encarada pela comunidade cientifica e pela sociedade. Inicalmente vista como evidência de que a evolução era impossível, tornou-se num exemplo clássico da mesma, indo de encontro a várias previsões importantes das teorias evolutivas. O registo fóssil escasso e fragmentado está progressivamente a dar lugar a um registo completo e importante, de um dos passos mais interessantes da história evolutiva dos vertebrados: a de um pequeno grupo de mamíferos terrestres que progressivamente se modificou e se tornou num dos mais bem sucedidos no ambiente marinho.

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