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O visão-americano, o lagostim-vermelho-americano e a fauna nativa - Um dilema de conservação no Noroeste de Portugal

Filipa Alves

O visão-americano chegou a Portugal na década de 1980. O primeiro projecto de investigação sobre a espécie em território nacional dá a conhecer a sua distribuição actual no Noroeste do país e analisa o papel do lagostim-vermelho-americano, também ele uma espécie invasora, como potencial facilitador da sua expansão.

Sentada à frente da bancada de laboratório, Luciana Simões empunha uma micropipeta automática na mão direita, ao mesmo tempo que segura, na mão esquerda, um pequeno tubo de plástico. Introduzindo a ponta descartável da micropipeta no tubo, retira uma pequena quantidade do líquido transparente nele contido, que esvazia de seguida num outro recipiente de fundo cónico. O procedimento será repetido com outros seis reagentes para preparar a solução a que será adicionado o ADN previamente extraído de dejectos, e que será submetido a um teste para determinar se contém ADN de mamífero carnívoro.

Esta é a fase inicial da análise genética dos excrementos recolhidos no Minho, no âmbito do projecto DILEMA, que é o primeiro estudo sobre o visão-americano em território nacional e está a ser levado a cabo por uma equipa formada, maioritariamente, por biólogos do Centro de Biologia Ambiental da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (CBA-FCUL).

 

Fig. 1 - Visão-americano na margem de um curso de água no Norte de Portugal

 

O visão-americano é uma espécie exótica que habita a interface terra-água, que é o habitat de duas espécies de carnívoro nativas de Portugal – a lontra e o toirão – com quem é de esperar que compita por recursos. Os objectivos deste projecto são identificar os factores que explicam a expansão do visão, percebendo se está a ser facilitada pelo também exótico lagostim vermelho americano, e investigar a relação entre o visão e a fauna nativa. O projecto recorre, essencialmente, a métodos não-invasivos, ou seja, que não envolvem a captura dos animais.

Actualmente, sabe-se que o visão-americano entrou em território nacional “pelo Minho, nos anos 80”, informa Diana Rodrigues, a bolseira do projecto que realizou o trabalho de campo. “Em 1985, foi feita a primeira observação, junto ao rio Minho”. A colonização fez-se a partir da Galiza, onde já havia uma população feral composta por indivíduos com origem em fugas acidentais ou libertações deliberadas a partir das numerosas quintas de criação de visão para a obtenção de peles que existiam na região, explica a bolseira. Minho, uma análise a grande-escala

Apesar de se saber da ocorrência do visão-americano em território português há mais de duas décadas, até ao início deste projecto a sua área de distribuição no país permanecia por determinar. “Sabíamos que estava presente no Minho, mas não sabíamos se era muito abundante ou não, se estava disperso ou não”, revela Diana Rodrigues. Deste modo, a primeira fase do projecto, que começou em 2009, consistiu no mapeamento da sua presença desde o rio Minho até ao rio Douro.

Sendo o visão uma espécie com afinidade pela água, esse trabalho envolveu a colocação, nos principais rios do Minho, de umas jangadas especiais desenvolvidas por um biólogo inglês para o estudo desta espécie. Essas plataformas flutuantes, que são “presas à margem, têm uma base com um buraco onde está preso um cesto com barro e com uma esponja por baixo, de forma a manter o barro mais ou menos húmido”, explica a bolseira. “Como são muito curiosos, os visões sobem para as jangadas e deixam as suas pegadas impressas no barro”. Por vezes, os animais “acabam por usá-las como locais de marcação territorial, deixando dejectos”. Para além disso, foram realizados percursos ao longo dos rios e recolhidos outros excrementos, que poderiam pertencer a esta espécie, à lontra ou ao toirão.

 

Fig. 2 - Jangada usada no projecto

 

Os dejectos recolhidos foram depois alvo de uma análise genética em laboratório. “Fez-se um teste de ADN mitocondrial, ou vários, para saber a que espécie pertencia”, explica Luciana Simões, bolseira do projecto responsável pelas análises genéticas.

A maior parte dos dejectos recolhidos era de lontra, o que confirma dados anteriores de que a espécie está distribuída por todo o Minho e é bastante abundante. Por seu lado, o mapeamento das pegadas e dos dejectos de visão revelou que, embora menos abundante, este carnívoro também está disperso pelo Noroeste de Portugal, embora ausente nas áreas de maior altitude. Com efeito, embora no primeiro ano do estudo se tivesse verificado que a espécie apenas ocorria nos rios Minho, Lima, Neiva e Cávado, passados dois anos já estava presente mais a Sul, nos rios Ave e Sousa, o primeiro afluente do Douro, revela Diana Rodrigues.

 

Fig. 3 - Pegada de visão-americano no barro

 

Esta evolução indica que a espécie está a expandir a sua área de distribuição para Sul. Por outro lado, e ao contrário do que aconteceu com a lontra e o visão-americano, praticamente não foram encontrados dejectos de toirão: “Dos 431 dejectos apanhados por todo o Minho só quatro eram de toirão”, refere a bolseira.

A presença do lagostim vermelho americano no Noroeste de Portugal também foi investigada neste estudo. A ocorrência do crustáceo foi detectada nos mesmos rios onde se fez amostragem de carnívoros, ainda que em abundâncias significativamente mais baixas do que no Sul do território nacional, região que esta espécie, também invasora, colonizou primeiro.
Lagoas de Bertiandos e São Pedro de Arcos, uma análise a pequena-escala

Numa segunda fase, o projecto focou-se em determinar a relação entre o visão-americano e os carnívoros nativos, o que foi feito a pequena-escala, na Paisagem Protegida das Lagoas de Bertiandos e São Pedro de Arcos, situada nas imediações de Ponte de Lima. Esta área protegida é que uma pequena zona húmida que apresenta “águas paradas ou com correntes fraquinhas”, condições ideais para o lagostim-americano e que não abundam no resto do Minho, o que faz com que “este seja um dos principais núcleos de lagostim vermelho americano no Norte”, revela Rui Rebelo. O biólogo do CBA, especialista em lagostim vermelho americano, tem realizado investigação sobre a espécie no Sul de Portugal, onde está amplamente distribuída e é muito abundante.

 

Fig. 4 - Lagoas de Bertiandos

 

A análise da composição dos dejectos recolhidos na Paisagem Protegida revelou que “a presa mais consumida, tanto pela lontra como pelo visão-americano é o lagostim, sem qualquer sombra de dúvida”, diz Diana Rodrigues. No entanto, as duas espécies “diferem nas outras espécies consumidas: a lontra, para além do lagostim, alimenta-se de peixes, e o visão, para além do lagostim, alimenta-se de micromamíferos e aves”.

Estudos noutras regiões da Europa, onde a lontra e o visão estão presentes e os recursos são escassos, indicam que a “lontra domina sobre o visão”, diz Diana Rodrigues. Isto acontece “porque a lontra é maior e mais forte”, ganhando vantagem em confronto directo e sendo, portanto, capaz de “expulsar o visão de certos rios”.

No entanto, na Paisagem Protegida das Lagoas de Bertiandos e de São Pedro de Arcos não é este o caso. “O que pode estar a acontecer aqui é que, como há tanto lagostim, o facto de os recursos não serem escassos e a lontra focar-se na predação de peixes poderá estar a permitir a coexistência das duas espécies sem qualquer tipo de confronto” revela Diana Rodrigues.

 

Fig. 5 - Dejecto com abundante lagostim

 

Este fenómeno permite explicar a rápida expansão do visão-americano no Minho nos últimos anos. “Nós pensamos que o visão estava a expandir-se devagarinho no Minho e em toda a zona Noroeste de Portugal”, comparativamente com o que tem acontecido noutros países da Europa, “e esta expansão só começou a acelerar após 2004 ou 2005, quando lá chegou o lagostim”, revela Rui Rebelo.

A lenta expansão do carnívoro invasor no Minho, até meados da primeira década do séc. XX, era consequência da baixa produtividade dos rios daquela região, que não satisfaziam os elevados requisitos energéticos do visão, a que acrescia o facto de, no nosso país “as populações de lontra serem muito saudáveis”, travando o seu avanço, explica Margarida Santos-Reis, coordenadora do projecto.

Estes obstáculos foram ultrapassados com o aparecimento e dispersão do lagostim vermelho americano na região, que terá acontecido não por expansão natural da espécie a partir de outras áreas, mas sim por acção humana. “Os primeiros pontos de presença do lagostim no Noroeste de Portugal só aparecem no ano 2000, a primeira vez em que é visto nas bacias hidrográficas a Norte do Douro. E logo a seguir, o animal aparece numas bacias muito distantes umas das outras, o que quer dizer que foi mão humana que o transportou”, refere Rui Rebelo.

Problema: expansão da área de distribuição do visão-americano

Os resultados deste estudo levam os investigadores envolvidos a recear o futuro. “Tememos que o visão vá conseguir expandir-se mais facilmente por causa da elevada abundância do lagostim”, refere Margarida Santos-Reis. A coordenadora do projecto manifesta duas preocupações perante este cenário: a competição com o toirão e a predação das espécies nativas.

A competição com o toirão é preocupante na medida em que, ao contrário do que acontece com a lontra, esta espécie perde em confronto directo como visão, com o qual partilha os hábitos mais terrestres, o que pode agravar a precária situação das suas populações, que Margarida Santos-Reis acredita já estarem a sofrer um declínio acentuado.

 

Fig. 6 - Lagostim-vermelho-americano

 

Por seu lado, a predação de espécies nativas também pode ser considerável. No entanto, neste caso, a elevada abundância de lagostim vermelho americano pode ser benéfica, uma vez que, se os visões tiverem muito lagostim disponível, consomem menos as outras espécies.

“Por isso é que o nosso projecto se chama DILEMA, porque é verdadeiramente um dilema de conservação. Temos duas espécies invasoras: uma delas causa inúmeros impactos em múltiplas espécies da nossa fauna mas, por outro lado, também está a favorecer espécies de carnívoros que dela se alimentam, como a lontra, pese embora poder estar a facilitar a dispersão de um invasor – o visão-americano”, refere Margarida Santos-Reis. “Esta situação cria um problema de conservação complexo no processo de decisão relativo a onde e como actuar”.

 

Leituras Adicionais

Ficha do Visão-americano

Ficha da Lontra

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Recuperação dos rios britânicos traz lontras de volta

Barreira para impedir a expansão do Lagostim-sinal na Escócia

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