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Os picanços: a importância das modificações na paisagem e estratégias de gestão do habitat

Luís Miguel Reino

Para travar o actual declínio das populações de picanços, resultante de profundas alterações na estrutura dos ecossistemas, diversas acções de gestão do habitat podem ser realizadas. Conheça algumas medidas e sugestões práticas.

Os picanços e a evolução da paisagem na Europa

Na Europa apenas ocorrem espécies de picanços do género Lanius, e à semelhança de outros grupos de aves, as actividades humanas neste grupo têm tido fortes impactos na sua distribuição e abundância.

De uma forma geral, os picanços estão largamente dependentes de áreas abertas ou semi-abertas, evitando as extensas áreas florestais. Nos últimos 10000 anos, a paisagem europeia sofreu profundas alterações, quer devido a alterações climáticas, quer a alterações induzidas pelo Homem, sobretudo resultantes das práticas agro-pecuárias. Provavelmente, aquando da última glaciação na Europa, a maior parte das diferentes espécies de picanços terão evitado as extensas manchas florestais que surgiram logo depois do recuo dos glaciares. Durante os períodos climáticos mais favoráveis, as diferentes espécies de picanços deverão ter tido distribuições mais vastas, ocupando uma grande diversidade de espaços abertos, como pastagens e bosques muito abertos. Estes espaços abertos existentes dentro das manchas florestais poderão ter sido gerados por processos muito diversificados, como sejam, por exemplo, o fogo, tempestades, cursos de água e a intervenção humana. De notar que a paisagem florestal não era certamente uniforme, podendo existir situações de orla que provavelmente terão constituído um habitat privilegiado para os picanços.

Alguns autores sugerem que espécies como o picanço-de-dorso-ruivo, Lanius collurio, se encontravam pré-adaptadas para a colonização extensiva das pastagens associadas a áreas de matos e arbustos espinhosos. Do mesmo modo, os picanços poderão ter tirado partido do rápido desenvolvimento das sociedades neolíticas, baseadas na agricultura e na criação de gado. Com esta revolução na cultura e hábitos nas populações humanas é de esperar que extensas florestas tenham sido abertas, dando lugar a culturas para abastecimento humano e pastagens para o gado e, provavelmente, constituindo habitats privilegiados para os picanços.

A idade de ouro dos picanços na Europa foi provavelmente precipitada pelo desenvolvimento das sociedades agrícolas que viriam, na maior parte dos casos, a perdurar durante muitos séculos. Mais recentemente, e com particular destaque na Europa Ocidental, a idade de ouro dos picanços parece ter terminado ou, pelo menos, sofrido um sério revés. Tal como LeFranc (1997) assinala, será mesmo possível arranjar uma data simbólica para marcar o início desta tendência - 1 de Janeiro de 1950, quando é assinado o Tratado de Roma e em particular o artigo 39º, consagrando a fundação e desenvolvimento da Política Agrícola Comum (PAC). Genericamente, pretendia-se delinear os objectivos que permitissem a intensificação agrícola, tendo como horizonte um aumento da produção agrícola.

As implicações que esta política teve na paisagem da Europa Ocidental foram profundas e, de certa maneira, os impactes na fauna que as transformações na paisagem que daí advieram ainda estão por determinar. De qualquer maneira, na maior parte dos casos, a intensificação agrícola teve como consequência o emparcelamento de extensas áreas, com remoção da maior parte das sebes arbustivas e arbóreas, a eliminação de pequenos bosquetes que entremeavam os campos agrícolas, o uso de pesticidas, com redução dos invertebrados que, provavelmente. Todos estes factores terão contribuído para o declínio dos picanços, em extensas áreas da Europa.

Desenvolvimento de medidas de gestão e conservação – o exemplo do picanço-de-dorso-ruivo

A determinação das causas que têm contribuído para o acentuado declínio desta espécie encontram-se mal estudadas. Contudo, as alterações nos habitats preferidos por este picanço terão, certamente, constituído um dos principais factores para esta situação. Se estas alterações puderem ou forem travadas a conservação desta espécie pode, eventualmente, ser incrementada.

Maneio do habitat para o picanço-de-dorso-ruivo a nível local

A gestão dos recursos, com o objectivo de melhorar as características qualitativas e quantitativas do habitat desta espécie, deve visar a melhoria geral dos seguintes aspectos físicos e tróficos do meio:

I. incremento dos recursos alimentares, através da gestão activa do habitat;

II. melhoria das condições do coberto de refúgio e de nidificação, por exemplo, através da manutenção de sebes de vegetação;

III. manutenção e criação de poisos naturais e artificiais, de forma a serem criados locais privilegiados de observação dos territórios destas aves.

Em seguida serão detalhadas algumas das medidas que poderão contribuir para a melhoria de alguns dos requisitos atrás mencionados.

Melhoria dos recursos alimentares

A criação de zonas com elevada diversidade de insectos pode ser alcançada com a criação de uma estrutura de habitat em mosaico, criando zonas intercaladas de vegetação, com diferentes alturas e densidades de vegetação herbácea e arbustiva, por forma a permitir, não só a existência de vegetação rica em insectos e outras presas, mas também áreas onde a vegetação mais baixa possa permitir mais facilmente a sua captura. A manutenção de zonas com vegetação alta pode ser muito importante para determinados grupos de insectos. Contudo, a manutenção de zonas de vegetação pouco densa é igualmente de extrema importância e conveniência.

A utilização do pastoreio pode ser outra forma de gerir e proporcionar diferentes tipos de coberto, sobretudo, porque é gerida a altura da vegetação. Todavia, o encabeçamento terá de ser correctamente gerido, pois uma má condução acarretará impactos nalguns grupos de insectos, como os Orthoptera. Um encabeçamento baixo resulta na manutenção de áreas com vegetação mais alta, evitando um sobrepastoreio. A utilização do pastoreio a par de rotações de culturas (2 a 5 anos) devem constituir umas das estratégias a seguir para a manutenção de diferentes estruturas de vegetação. Supõe-se que a vegetação alta deve ser mantida até 20% da área total a ser gerida, por forma a maximizar as populações de insectos. Por exemplo, a manutenção de faixas entre 2 a 3 metros em redor de sebes naturais ou artificiais pode ser uma estratégia a seguir. A manutenção de arbustos lenhosos também pode ser de extrema importância para alguns insectos. Podem ainda ser criados alguns habitats específicos para determinados grupos, como por exemplo, através do empilhamento de madeira, vegetação morta, entre outros materiais.

Outra estratégia para melhorar os recursos alimentares para esta espécie consiste no fornecimento de alimento adicional, sobretudo no caso de populações muito ameaçadas. O alimento pode ser fornecido em situações em que as condições climatéricas são mais instáveis, por forma a impedir perturbações no sucesso reprodutivo.

Aumento da acessibilidade das presas

A técnica de caça dos picanços consiste genericamente em “poisar e observar”. Todavia, esta técnica é manifestamente insuficiente em áreas dominadas por vegetação muito alta. Normalmente, os picanços do género Lanius preferem caçar em áreas de interface entre diferentes estratos de vegetação. Porventura, uma das características que melhor podem definir a qualidade do habitat para o picanço-de-dorso-ruivo é a proporção entre áreas de vegetação alta e áreas de vegetação mais baixa, assim a como a sua disposição no espaço. Como para a generalidade das diferentes espécies do género Lanius, a existência de poisos é fundamental para a técnica de caça do picanço-de-dorso-ruivo. Arbustos, árvores, postes de cercas de diversos tipos (sobretudo com arame farpado), fios eléctricos, rochas/pedras, construções, fardos de forragem seca (e.g., de feno), cardos, algumas espécies de umbelíferas em floração e pilhas de madeira, tudo pode servir como locais de poiso.

A utilização de poisos artificiais com 1 a 2 m de altura pode, igualmente, ser uma estratégia a seguir. A utilização de paus de madeira (e.g., postes de cercas ou postes utilizados nos postes telefónicos), dispostos numa grelha de 12,5 m, constitui normalmente a melhor opção a seguir. Estudos realizados com picanços-reais Lanius excubitor demonstraram a eficácia desta medida de gestão. A utilização de poisos permanentes também podem ser obtidos através da simples plantação de arbustos numa grelha entre 12-20 m. Note-se que a utilização de poisos mais altos pode, de igual modo, ser uma medida de gestão importante, uma vez que estes podem constituir locais privilegiados para os machos guardarem o seu território. Por exemplo, estes postes podem ser dispostos numa grelha mais espaçada, devendo ter uma altura compreendida entre 2,5-5 m.

Melhoria do habitat de nidificação

Apesar desta espécie poder usar uma série de locais para edificar os seus ninhos, o mais vulgar é a espécie construí-los em arbustos, muitas vezes espinhosos. Estes arbustos espinhosos podem ser plantados, tanto de uma forma isolada, como em linha, sobre a forma de sebes. Alguns autores assinalam que até 45% da área do território deve ser ocupada com arbustos. O maneio do habitat é muito importante, por forma a alcançar a estrutura e densidade ideais de arbustos, por exemplo, através da gestão adequada do pastoreio e dos cortes selectivos de vegetação. Alguns tipos de medidas de gestão, como sejam os cortes de vegetação e a realização de fogos controlados devem ser evitados na época de nidificação por forma, a não perturbarem este período, sempre crítico.

As medidas de gestão aqui propostas estão disponíveis numa extensa bibliografia e, embora se refiram a trabalhos e experiências exteriores a Portugal, tendo em conta as características deste grupo de aves, considera-se que poderão ser, na generalidade, aplicadas à população portuguesa de picanço-de-dorso-ruivo, podendo algumas delas, inclusive, ser adaptadas às outras duas espécies de picanços da nossa fauna.

 

Projecto AGRO - "Culturas para a Fauna em Montado: Demonstração dos seus efeitos na Gestão Cinegética e na Biodiversidade" - Candidatura nº 106

 

Bibliografia consultada:

LeFranc, N. (1997). Shrikes and the farmed landscape in France. In: Pain, D.J. & Pienkowski, M.W. (Eds.). Farming and Birds in Europe: The Common Agricultural Policy and its Implications for Bird Conservation: 236-268. Academic Press, San Diego.

LeFranc, N. & Worfolk, T. (1997). Shrikes. A guide to the shrikes of the world. Pica Press, Norfolk.

Van Nieuwenhuyse, D.; Nollet, F. & Evans, A. (1999). The ecology and conservation of the Red-backed Shrike Lanius collurio breeding in Europe. Aves 36: 179-192.

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