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Estratégia de Conservação do Lagarto-de-água em Portugal

José Carlos Brito

O Lagarto-de-água é um endemismo ibérico, característico das margens de linhas de água. Possuindo uma distribuição fragmentada, diversos núcleos isolados encontram-se ameaçados e requerem acções de conservação urgentes.

O Lagarto-de-água, Lacerta schreiberi, é um endemismo ibérico (só ocorre na Península Ibérica), cujos principais núcleos populacionais ocupam o quadrante Noroeste da península, de influência climática marcadamente atlântica. Na metade mais meridional, apenas existem alguns grupos isolados, geograficamente muito dispersos, em geral circunscritos a algumas regiões montanhosas tais como as serras de Monchique e S. Mamede, em Portugal, e as serras de Las Villuercas, San Andrés e Montes de Toledo, em Espanha, onde as condições climáticas ainda permitem a sua persistência. Trata-se assim de uma espécie de elevado interesse conservacionista, incluída no Anexo II da Convenção de Berna, Anexo II e IV da Directiva Habitats (Directiva 92/43/CEE) tendo contudo o estatuto de conservação de Não-Ameaçado (NT) em Portugal.

 

Fig. 1 - Lagarto-de-água (Lacerta schreiberi)

 

Distribuição

O Lagarto-de-água encontra-se de uma forma generalizada em todo o centro e norte de Portugal, a norte do rio Tejo, desde o nível do mar até aos 1800m no Planalto Central da Serra da Estrela. No entanto, na metade sul do país possui várias populações isoladas: (1) a norte do rio Tejo - Serras de Sintra e Montejunto e Caldas da Rainha; (2) litoral alentejano e algarvio - Serras de Monchique, Brejeira e Cercal; (3) interior alentejano - Serra de S.Mamede.

Habitats

A espécie ocupa preferencialmente as margens de linhas de água em que a vegetação ripícola possui características marcadamente atlânticas, Amieiros (Alnus glutinosa), Vidoeiros (Betula pubescens), Carvalho alvarinho (Quercus robur), Carvalho negral (Q. pyrenaica) ou Fetos-reais (Osmunda regalis). Ocupa desde vales agrícolas de montanha até paúis de baixa altitude.


Fig. 2 - Distribuição do Lagarto-de-água na Península Ibérica e Portugal


Efectivos Populacionais nos Núcleos Isolados

As estimativas existentes apontam para mais de 50000 indivíduos nos núcleos isolados de S.Mamede e Monchique e apenas cerca de 3700 para o Cercal. Para este último, a estimativa existente é baixa, sendo mais preocupante porque este efectivo está distribuído por 3 ribeiras isoladas sem quaisquer hipóteses de contacto entre si.

 

Factores de Ameaça

Os principais factores de ameaça ao Lagarto-de-água e principalmente aos seus habitats podem ser considerados em cinco grupos:

(A) Obras de Regularização das Margens das Linhas de Água. Estas obras implicam quase sempre o cimentar das margens, com o abate da vegetação natural. As margens das linhas de água constituem precisamente o habitat preferencial do Lagarto-de-água, pelo que qualquer acção no sentido da sua alteração poderá afectar a permanência da espécie.

(B) Construção de Barragens. Esta construção implica normalmente a submersão de grandes áreas a montante, criando frequentemente descontinuidades entre as populações localizadas a montante e a jusante da barragem. A construção de pequenos açudes, com pequenas alterações na vegetação natural ripícola, não representa uma grande ameaça.

(C) Descargas de Efluentes. A poluição quer seja doméstica, industrial ou agro-pecuária prejudica gravemente a qualidade da água. Embora o Lagarto-de-água habite as margens das linhas de água, é óbvio que directa ou indirectamente é sempre afectado pela qualidade da água. A descarga sistemática de efluentes provenientes de suiniculturas e esgotos urbanos contribui marcadamente para a degradação das populações de toda a região Oeste a norte do rio Tejo;

(D) Despejo de lixos e entulhos, extracção de inertes e a construção de estradas de elevado impacto na destruição do habitat, constituem outros factores adicionais de ameaça aos habitats do Lagarto-de-água;

(E) Alteração da Vegetação das Margens das Linhas de Água. O corte exagerado da vegetação ripícola visando o aproveitamento de terrenos para fins agrícolas e pastoreio assim como a plantação indiscriminada de espécies introduzidas (especialmente o Eucalipto) nas linhas de água, afecta a presença do Lagarto-de-água e constitui uma séria ameaça à sua preservação. A plantação de Eucaliptos atinge proporções alarmantes no isolado Monchique/Cercal, estando praticamente toda a área de ocorrência do Lagarto-de-água nestas serras coberta por esta exótica. A sua plantação, se não puder ser totalmente evitada, deverá pelo menos respeitar uma faixa de segurança mínima de 50m para cada lado das linhas de água.


Fig. 3 - Aterro para o alargamento da estrada Selão / Odeceixe, destruindo a margem da Ribeira de Seixe no isolado populacional de Monchique. Estas obras foram realizadas pelo Exército Português.

Áreas Prioritárias para a Conservação

As áreas prioritárias para a conservação incluem cinco níveis de prioridade de conservação, abrangendo o mais importante 15% da área de distribuição da espécie, ou seja cerca de 6% da área de Portugal. As áreas de mais elevada prioridade localizam-se principalmente em três zonas:

(A) A Norte do rio Douro: serras da Peneda, Soajo, Amarela, Gerês, Cabreira, Barroso, Larouco e Alvão;

(B) Entre os rios Douro e Tejo: serras de Montemuro, Caramulo, Estrela, Lousã e Açor e a região compreendida entre Castro Daire, V.N. Paiva e Moimenta da Beira;

(C) Isolados populacionais de S. Mamede, Monchique, Cercal e Sintra.
As populações mais ameaçadas são as que se encontram mais afastadas das populações centrais e ocorrem em concelhos com elevada densidade populacional humana. Nesta situação estão as populações dos concelhos e áreas circundantes do Porto, Coimbra, Viseu, Caldas da Rainha, Torres Vedras e Mafra. A população de Lagarto-de-água de Sintra, estando isolada e num concelho onde a densidade populacional humana é elevada, surge como área de grande risco e onde a extinção é muito provável a curto prazo. O núcleo isolado do Cercal apresenta também um risco de extinção elevado, principalmente devido ao seu reduzido número de efectivos e ao seu isolamento.


Fig. 4 - Áreas prioritárias para a conservação e de risco de extinção do Lagarto-de-água em Portugal


Estratégia de Conservação

O factor mais importante para a preservação do Lagarto-de-água é sem dúvida a protecção eficaz dos seus habitats, que são preferencialmente as margens das linhas de água. Esta protecção deve incluir a proibição do corte exagerado da vegetação ripícola, construção de obras de elevado impacto nas linhas de água, assim como prevenção da poluição aquática. Estas medidas se não implementadas de uma forma geral, deverão pelo menos ser atingidas dentro do Sistema Nacional de Áreas Protegidas (SNAP) e da Rede Natura 2000 (RN2000). A legislação portuguesa considera as margens das linhas de água como sendo parte integrante da Reserva Ecológica Nacional (REN) o que nesta perspectiva facilitaria a conservação da espécie. No entanto o desrespeito pela REN é muito frequente, mesmo por parte das entidades oficiais.

As áreas litorais a norte de Sintra não justificam a sua inclusão no SNAP/RN2000, visto que ocorrem em áreas densamente povoadas, pelo que a criação de Reservas Regionais, sob jurisdição das Autarquias, seria a solução mais eficaz. Visto que a protecção da espécie pode ser atingida pela preservação de um habitat relativamente restrito, a vegetação ripícola, que já possui até um enquadramento legal (REN), então deveria ser relativamente fácil o estabelecimento de Reservas Regionais.


Conservação dos Isolados Populacionais

A primeira medida de gestão dos isolados populacionais, seria a inclusão das suas áreas de maior prioridade no SNAP, mais concretamente da região de Monchique/Cercal e no que respeita ao Parque Natural de S.Mamede, o seu alargamento de forma a incluir algumas das suas actuais áreas marginais. O isolado de S.Mamede apresenta um elevado número de indivíduos distribuídos por uma área aparentemente não fragmentada. Contudo várias áreas de habitat mais degradado são passíveis de acções de recuperação, sobretudo nas ribeiras acima dos 600m de altitude, sendo pois alvos potenciais para eventuais reintroduções com indivíduos de populações adjacentes que se encontrem com um bom número de efectivos. Estas acções têm a vantagem de prevenir a fragmentação das populações, aumentado as zonas de contacto entre bacias. Este problema, numa zona como S.Mamede, poderá ter sido consideravelmente aumentado com a construção da barragem da Apertadura e pelas sucessivas florestações com Pinheiro-bravo, acções estas que foram realizadas em pleno Parque Natural.

No isolado de Monchique, a fragmentação populacional é mais evidente sobretudo nas áreas afectadas pelo grande incêndio de 1995. Nestas ribeiras, aconselha-se a recuperação dos habitats e a suplementação das populações aí existentes. Esta acção poderá ser realizada por translocação de indivíduos de populações de maiores dimensões (dentro do isolado). Em habitats em bom estado de conservação, sugere-se ainda a reintrodução de indivíduos como forma de minimizar os problemas resultantes de fenómenos catastróficos, como os incêndios. A própria população principal encontra-se sujeita a constantes agressões, tais como construção de estradas de elevado impacto ou a plantação de eucaliptos que não respeitam a área de REN para as linhas de água. Nestes casos, a monitorização das populações é essencial por forma a detectarem-se atempadamente possíveis factores de ameaça e ainda como processo de acompanhamento de uma eventual acção de suplementação.

As três populações, isoladas entre si, da Serra do Cercal - Corgo das Selas, Corgo dos Godins e Ribeira do Torgal - apresentam no total menos de 3700 indivíduos. Nesta caso justificam-se portanto acções mais urgentes e extensivas. Sugere-se que estes núcleos sejam reforçados com indivíduos criados em cativeiro, assim como que seja feita a reintrodução de indivíduos em habitats adjacentes aos actualmente ocupados. A recuperação de habitats basear-se-ia fundamentalmente em dois tipos de acções: limpeza dos grandes silvados que envolvem alguns troços do Corgo das Selas e Corgo do Vale de Água e a recuperação das margens, em alguns troços, do Corgo dos Godins, os quais foram alterados pela plantação de eucaliptais.


Bibliografia

Brito, J.C. (1994). Áreas Potenciais para a Conservação do Lagarto-de-água, Lacerta schreiberi, em Portugal. Relatório de Estágio. Licenciatura em Biologia - Recursos Faunísticos e Ambiente. Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. 46pp.

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Brito, J.C.; C. Luís; M.R. Godinho; O.S. Paulo e E.G. Crespo (1998). Bases para uma Estratégia de Conservação do Lagarto-de-água e seus Habitats. Estudos de Biologia e Conservação da Natureza, 23. Instituto da Conservação da Natureza, Lisboa. 74pp.

Brito, J.C.; M.R. Godinho; C.S. Luís; O.S. Paulo e E.G. Crespo (1999). Management Strategies for Conservation of the Lizard Lacerta schreiberi in Portugal. Biological Conservation 89(3): 311-319.

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Godinho, M.R. (1995).Diferenciação Genética e Morfológica de Populações de Lacerta schreiberi. Relatório de Estágio. Licenciatura em Biologia - Recursos Faunísticos e Ambiente. Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. 47pp.

Luís, C.M. (1996). Elementos de Autecologia de Lacerta schreiberi. Relatório de Estágio. Licenciatura em Biologia Aplicada aos Recursos Animais. Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. 47pp.


J.C. BRITO
Centro de Biologia Ambiental. Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
1749-016 Lisboa.

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