Da disponibilidade e indisponibilidade para sentir os prazeres subtis que se desprendem do mundo natural

Maria Júdice Borralho
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O contacto com a Natureza é fonte de inspiração e de encantamento, mas é necessário estar disponível para tal. Para lá da indisponibilidade está a negligência e a irresponsabilidade; quantas vezes já se deparou com situações semelhantes a esta?...

A influência da Natureza na vida do Homem, nas tendências estéticas, intelectuais, religiosas e outras, é eterna. Lugares que a pintura, a poesia e o romance distinguiram, outros respeitados como sagrados, porque aí se sentiu uma relação mais íntima com o divino, continuam a proporcionar emoções positivas e permitem ainda que se conviva de mil modos com o passado. Como o futuro depende das acções que praticamos hoje teme-se pelo destino desses e de outros lugares. 
 
O Homem revitaliza-se, sempre que adquire disponibilidade para sentir a abundância de prazeres subtis que o mundo natural lhe proporciona. O desconforto da vida é atenuado e substituído por sentimentos de serenidade e plenitude, se entra pela espessura de um bosque ou espraia a vista pela vastidão de um oceano fantasticamente colorido pelo sol ou atinge o cume de uma montanha. A Natureza, fonte inesgotável de bem-estar, também o faz sonhar mas, são os poetas de imaginação fecunda e linguagem abundante de significações, o exemplo perfeito da disponibilidade para a sentir, ver e ouvir e isso entende-se lendo-os. Fernando Pessoa, é citação inevitável:


...se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.


Talvez seja por tudo isto que, aqui e acolá, aparecem sinais rectangulares , exibindo binóculos estampados junto ao nome de um lugar, cujo caminho para o atingir, é indicado por uma seta. Em S. Pedro de Sintra, como em tantos lugares espalhados pelo País, há um desses sinais. Letras brancas sobre fundo castanho compõem as palavras Santa Eufémia, binóculos pretos sobre quadrado branco, simbolizam a excelência do espaço. Talvez Eça de Queiroz também pensasse nesse recanto da Serra de Sintra quando escreveu no livro Os Maias o que se segue:


E a passo, o break foi penetrando sob as árvores do Ramalhão ...naquele simples bocado de estrada, todo salpicado de manchas de sol, sentia-se já sem se ver, a religiosa solenidade dos espessos arvoredos, a frescura distante das nascentes vivas, a tristeza que cai das penedias.

E, como o Homem gosta de mergulhar noutros mundos, de respirar outros ambientes, de refrescar pensamentos, pode acontecer que um transeunte ao ser surpreendido pelo sinal dos binóculos pretos, se sinta amistosamente convidado. Esquivando-se deixa os caminhos buliçosos da vida quotidiana, e vai sentir a respiração da Natureza em Santa Eufémia. Mal entre na floresta encontrará árvores que rivalizam entre si em beleza, e verá com espanto, a imponência das penedias arredondadas pela erosão. A vizinhança do Castelo dos Mouros com as ameias afeiçoadas ao ondulado da montanha e o Palácio da Pena ali mesmo à mão, dão um toque mágico ao conjunto. Aves podem cantar pelas moitas ou sobrevoar o lugar. Talvez um céu azul marinho favoreça todas as coisas que a Natureza ali esculpiu.


Mas como nem todos visitantes do local estão disponíveis para apreciar aquele pedaço da Serra, o tal viajante pode ser desagradavelmente surpreendido por um fenómeno assustador chamado poluição. 
 
Um riquíssimo e variado conjunto de lixo composto por elementos que sobejaram de animados piqueniques, talvez polvilhem o local e a capelinha dedicada à Santa, com uma inscrição informando que foi restaurada no século XIX por um devoto estrangeiro, aguarda novo devoto que a faça resplandecer no adro onde está instalada. Até a fonte secou.


Não se pense, porém, que a Santa esqueceu o lugar que lhe é dedicado. Abnegadamente, continua a fazer os seus milagres. Ela não tem poder para transformar comportamentos de visitantes apostados em sabotar a preciosa harmonia do local, mas protege-o de ser consumido pelas chamas.


O resultado de orgíacas sessões de fumo, espalham-se por aqui e por ali. Num espaço menor que um metro quadrado a paciência só deu para contar duas centenas de pedaços, o resto ficou dos cigarros que ali arderam, e foram lançados ao solo.


Quantos locais, de Norte a Sul do País, estarão em condições semelhantes?
Certamente que umas horas de chuva tornarão o espaço menos repelente e os serviços de limpeza, no futuro, talvez passem a dedicar, aos lugares assinalados com binóculos a atenção que eles merecem. Mas a crueldade anónima, os comportamentos irreflectidos e a indisponibilidade para apreciar a imponência do mundo natural, em pouco tempo neutralizarão qualquer tentativa de manter o local impoluto.


Que será possível fazer por estes recantos que a Natureza privilegiou?


Haverá modo de os proteger?


Introduzir neles uma dimensão histórica, através de painéis que relatem episódios ocorridos, nos locais, e espalhar informações sobre a fauna e flora no passado e no presente, serão medidas suficientes para arrefecer a fúria profanadora de visitantes inconscientes? E colocar por lá pequenos poemas que cantem a beleza da Natureza, reforçariam, a intenção de manter incólume o espírito de tais recantos?

É urgente que se organize um grupo de amigos de cada um dos espaços. Ou então, será melhor retirar os tais sinais que exibem binóculos negros sobre fundo branco, junto a letras brancas que compõem o nome de um lugar.

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