Uma Coreografia de Verdes

Maria Júdice Borralho
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Todos os poemas dedicados a Sintra são apenas um, interminável, repetem-se emoções, versos a derramar chuviscos de sagrado, concertos de verde, trânsitos de seiva, é a metamorfose da paisagem em palavras


                                                     Ficava o caro Tejo e a fresca Serra de Sintra, 
                                                                                                   e nela os olhos se alongavam
                                                                                            LUSÍADAS, V, 3

  
A floresta cobre o declive da montanha e a cor é o elemento distinto, os outros, matéria e forma e espaço, submetem-se-lhe. Um verde regenerado na última Primavera, contorna obstáculos, alastra, abre caminhos em singular coreografia que não é invenção de poeta, mas talento de milhares de árvores, de uma multidão de folhas. Tonalidades de verde escorrem pela encosta. Entre verdes, espreitam volumosas rochas modeladas pelo tempo e dominadas pelo peso que as afunda e imobiliza.

                    

Vento ausente, sol no alto, o olhar do espectador desliza, poisa, alonga-se, vai de um verde a outro verde, o corpo envolve-se na acção do olhar. Na memória, vai ficar o espectáculo de uma inundação de verdura, e a agradável experiência de não estar só a ver, estar também a sentir, a ser tocado por sinais de bonança que lhe chegam ao frágil corpo, não há dores nem temores. António Damásio, expoente máximo da neurologia mundial, investiga à luz da ciência este tipo de emoções e consequentes sentimentos. No LIVRO DA CONSCIÊNCIA, descreve ao leitor as alterações fisiológicas que ele experimentou, enquanto contemplava extraordinária paisagem natural. A palavra está sempre disponível para quem dela necessita e o cientista serve-se com elegância e sabedoria: não estou apenas a ver, estou também a sentir emoções causadas por esta beleza majestosa, e a sentir todo um leque de alterações fisiológicas que se traduzem numa sensação calma de bem-estar. Isto não está a acontecer por deliberação minha, e não sou capaz de evitar esses sentimentos, tal como não seria capaz de os iniciar. Eles chegaram, estão aqui e vão ficar, numa qualquer modulação, enquanto o mesmo objecto consciente permanecer à vista e enquanto a minha reflexão os mantiver em reverberação. Talvez o cientista também queira dizer que, se poeticamente o Homem habita a Terra, uma serena surpresa pode ocorrer, mas se anda distraído e passa pelas coisas sem as ver ou lhes dirige apenas um olhar apressado, corre o risco de desperdiçar uma boa parte do belo que a vida tem para oferecer.

Como nasceu e vai crescendo a aura que envolve Sintra? A paisagem sintrense tem espessura metafísica ou a sua famosa beleza resulta simplesmente da arquitectura do cenário natural e do agradável desalinho de árvores triviais na luta pela luz e pela água?

                    

Pelos bastidores do aéreo verde vai um movimento extraordinariamente complexo, é a árvore a esmerar-se na seiva. Os pelos absorventes das extremidades radiculares sugam a água carregada de sais minerais. Magicamente, ou não, esta solução é bombeada a partir do solo, passa de uma célula para outra, de um andar para outro, e chega às folhas cujos cloroplastos, hábeis alquimistas, transformam a energia solar em substância orgânica. Porém, a aura que envolve Sintra não advém apenas de fenómenos do mundo natural, outros importantes elementos entram na composição do etéreo tecido que a constitui.

                    

Os tempos cruzam-se, o passado abre-se em ecos que ressoam multiplicando-se. No eco do eco mais longínquo, já Sintra começa a ser e a entregar-se à luz da palavra que persegue a essência. É o trabalho da poesia. Como quem passa ao futuro uma preciosidade, cada geração recebe a herança da geração anterior, enriquece-a de novas experiências e passa-a à seguinte. Adensa-se a aura e cresce o “poema”, porque ainda que muitos, todos os poemas dedicados a Sintra são apenas um, interminável, repetem-se emoções, versos a derramar chuviscos de sagrado, concertos de verde, trânsitos de seiva, é a metamorfose da paisagem em palavras.

Herdámos Sintra, acordamos e adormecemos neste Paraíso que Salomão mandou a um rei de Portugal (Gil Vicente).     

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