O Sapo também habita num verso de Poema

Maria Júdice Borralho
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Encarados por nós de múltiplas formas, os anfíbios estão presentes em diversas facetas da actividade humana, entre as quais a literatura. Também habitam em versos de poema.

Na solidão do espaço, enxames de galáxias expandem-se e brilham. Na agitação da Terra, o Reino Animal, a mais bela e valiosa de todas as colecções, exibe-se. A reflexão concentra-se numa estrela e num animal: o Sol e o Sapo. O papel do Sol na vida da Terra justifica o chamamento mas, entre milhões de espécies vivas, como se justifica a escolha do Sapo para herói desta “aventura”?

As explicações são sempre incompletas:

A luz do Sol evoca-se na sua qualidade de fenómeno metafísico. Sempre com o Sapo no horizonte, deseja-se que derrame “lucidez” em todos os que, com vozes desafinadas maculam a imagem do delicado anfíbio que, como qualquer ser vivo, está permanentemente ocupado na resolução dos problemas básicos da vida, na selecção de melhores estratégias de sobrevivência. Procurar alimento em quantidade suficiente para a produção de energia, escolher o par para o acasalamento assegurando que a vida continua e defender-se de ameaças à integridade física, é o alto preço que o Sapo paga para viver. Da amiba ao ser humano, a procura do bem-estar ocupa todos os seres e, por isso, respeitar a vida, amá-la como coisa sagrada, produto de milhões de anos de evolução, é cada vez mais urgente.

A luz como metáfora surge das aspirações de racionalidade no convívio entre todos os seres. Os dois casos que se seguem, seleccionados ao acaso entre incontáveis, ilustram dois modos de proceder. No primeiro, um compositor e uma aranha são protagonistas. Claude Lévi-Strauss no livro OLHAR OUVIR LER refere curioso episódio. Informa que Chabanon, violinista, compositor e filósofo interessava-se por aranhas e tocava-lhes árias de violino para saber a que tipo de música se mostravam sensíveis. O segundo caso resume-se a uma informação sobre o Sapo, disponível numa enciclopédia. Quem procurar essa informação, deseja-se que não seja uma criança, lê: Género de batráquios anuros insectívoros, de aspecto repelente (…) Prestam grandes serviços destruindo insectos e milhares de pequenos animais nocivos, motivo por que não se lhes deve fazer mal, apesar do seu aspecto repelente. Naturalmente a mesma enciclopédia explica o significado de “repelente”: Que inspira nojo, aversão, odioso, repugnante. No grande concerto da sinfonia cósmica, não contribuirá o Sapo para a Beleza do conjunto?

É óbvio que nada do que respeita à Beleza é óbvio. Da Grécia Antiga ao século XXI a ideia de Beleza nunca foi algo de imutável, nem de absoluto. Modelos de Beleza variaram consoante um período histórico e uma região e, por vezes, até numa mesma época. Hesíodo narra que, nas bodas de Cadmo e Harmonia, as musas cantaram em honra dos esposos os versos que se seguem: Quem é belo é querido, quem não é belo não é querido. David Hume nos ENSAIOS MORAIS, POLÍTICOS E LITERÁRIOS revela a sua opinião sobre tão delicado tema: A Beleza não é uma qualidade das coisas em si mesmas: só existe na mente que as contempla e cada mente percebe uma Beleza diferente (…) cada um deveria satisfazer-se com o seu sentimento sem pretender regular o dos outros. Voltaire, no DICIONÁRIO FILOSÓFICO escreve: Perguntai a um sapo o que é a Beleza o verdadeiro belo o to kalon. Responder-vos-á que consiste na sua mulher com seus belos olhos redondos que se projectam para fora da pequena cabeça, o pescoço grosso e achatado, o ventre verde e as costas castanhas.

Presentemente não existe um ideal único de Beleza. Um investigador do futuro não poderá identificar o ideal estético a partir do século XX. A HISTÓRIA DA BELEZA dirigida por Umberto Eco termina com uma afirmação que espelha a realidade actual: O tal investigador deverá render-se perante a orgia da tolerância, diante do sincretismo total, do absoluto e imparável politeísmo da Beleza. Não será o templo da Beleza o justo coração do Homem?

A poesia é mais que uma meditação delicada e a ciência não é a única via que orienta o modo de conviver com o mundo natural. Poesia e Ciência nasceram do mito porém, a Ciência não sabe lidar com o “sagrado”. Se os conhecimentos científicos existentes sobre o Sapo são insubstituíveis, a literatura que o menciona pode dar um bom contributo para o modo de pensá-lo e aceitá-lo, o que é importante para a sua conservação. Virgínia Woolf, Teixeira de Pascoaes, Rui Belo e Breton são escritores, entre muitos outros, que incluíram o curioso anfíbio na obra que escreveram. Ou buscando a luz do Sol, ou saboreando uma chuvada, ora saltando, ora cantando, ou ainda envolvido nos trabalhos da conservação da sua espécie na Terra, cada autor, lembra que há um animal chamado Sapo, que anda pelos campos, assoberbado, empenhado na difícil tarefa de viver. Eis como ele entra na literatura:

 Virgínia Woolf, escreveu aquele que talvez seja o seu melhor romance, AS ONDAS. Marguerite Yourcenar, sua tradutora francesa, classifica-o de “narrativa musical”e, compara os monólogos interiores à Arte da Fuga de Bach. Ora, curiosamente, o Sapo ocupa no romance, um singelo espaço, embora não seja como cantor. A romancista inglesa atenta aos sons, a certa altura escreve: Ouve! É o salto de um enorme sapo na vegetação rasteira; algumas dezenas de páginas passam, e o simpático animal volta à cena: semelhante a um sapo no seu buraco, acolho os acontecimentos com perfeita frieza.

Teixeira de Pascoaes, é um observador atento da Natureza. Certa noite, entre os gemidos do vento e tristes pensamentos, o canto de um Sapo fez a diferença: Nos pinheirais o vento geme e chora / E os sapos cantam / E ouço a noite a chorar no meu jardim.

Rui Belo, melancolicamente, inventa caminhos no labirinto do tempo. No poema INVOCAÇÃO entre solidão, sombras e gente que não sente qualquer necessidade de saber, há a esperança de que perto ande pelo ar o perfume da flor do castanheiro e há também um alegre Sapo. Nunca aspirei a mais do que ao repouso / nas regiões onde em fins de Janeiro /já o inverno lentamente se despede / e o sapo satisfeito pela chuva /oculta a cabeleira de uma nuvem …

André Breton, revolve a substância poética. Na poesia surrealista, fluxo de um pensamento que gera lances imprevistos, poderá o absurdo tornar-se racional? Por que não há-de a linguagem perseguir algo, mesmo que acabe por cair no vazio? No poema FATA MORGANA o Sapo de Breton desempenha estranha missão: Uf o lagarto passou sem me ver / (…) E o ovo religioso do galo / Continua a ser religiosamente chocado pelo sapo / Da velha varanda segura apenas por um fio d´hera /Acontece o olhar errante sobre as adormecidas águas …

David Attenborough, no livro A VIDA NA TERRA lembra: Há cerca de 350 milhões de anos, num pântano de água doce, teve lugar um episódio que iria ser decisivo na história da vida: alguns “peixes”começaram a arrastar-se para fora da água e tornaram-se assim os primeiros vertebrados a colonizar a Terra (…) esses peixes tiveram de resolver dois problemas: como locomover-se fora de água e como obter oxigénio do ar.

Ora a pouco quilómetros do Oceano, onde há 200 milhões de anos passeavam dinossáurios, hoje vivem vários sapos. Em manhãs de Primavera, nunca uma visita ao lugar, deixou frustrado o desejo de encontrar um ou mais. O campo é fértil, levemente ondulado e atravessado por pequeno riacho. Como seria há duzentos milhões de anos!?

Os cheiros a erva fresca e a folha que apodrece misturavam-se. Numa qualquer manhã de Abril, a surpresa de descobrir um exemplar tardava. Entretanto o espectáculo da banalidade de situações centenas de vezes observadas, não se perdia: a neblina matinal dissipava-se, um gaio localizava o alimento que guardara no Outono, aves poisavam e o descair da asa com o fim do voo era gracioso, uma águia cortava o espaço aéreo. Vista, ouvido e olfacto registavam um caudal de impressões quando, já um pouco tardiamente, a persistência foi premiada. Perto do riacho um sapo tomava a sua refeição matinal. Os binóculos permitiam observar o banquete sem o perturbar: caçara uma minhoca e segurava uma das extremidades com a boca e cuidadosamente raspava-lhe o corpo com as patas dianteiras removendo a terra que se agarrava ao corpo da vítima. Quando tudo estava a seu contento a refeição consumou-se e, curiosamente, ao engolir piscava os olhos, fenómeno que certamente ajudava o processo.

Esta foi a mais interessante visita realizada àquele lugar onde há 200 milhões de anos passeavam dinossáurios e hoje, uma pacata e activa população de sapos habita. 

 

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