A Natureza, os Artistas e os Outros

Maria Júdice Borralho
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Certos lugares desafiam persistentemente os olhos de pintores e poetas, Sintra é um bom exemplo. João Cristino da Silva ampliou a fama do lugar com uma obra apresentada na exposição Universal de Paris de 1855: a tela Cinco Artistas em Sintra.

A Biologia chama simbiose à associação de dois organismos com benefícios recíprocos. O líquen, resultado da união de uma alga e de um fungo, é o exemplo mais conhecido. Será preciso fabular, para concluir que Natureza e criador artístico também formam uma simbiose? A Natureza produz os fenómenos que impressionam o artista, este medita-os, e a obra nasce. Um quadro, um poema, uma composição musical podem ser veículos de divulgação de atitudes de respeito e de propósitos de preservação ambiental. A relação que o artista mantém com a Natureza é o exemplo perfeito de uma convivência harmoniosa. Além disso ambos, possuem uma característica comum: a obsessão de criar. A actividade das forças naturais povoou o Planeta com miríades de seres que andam, voam e nadam à nossa volta. Há biliões de anos o universo era uma “papa”, imensa e monótona, o poeta grego Hesíodo já dizia Era o caos, hoje convivemos com uma enorme variedade de formas e de cores . Quanto à aventura da criação artística, responsável pelas preciosidades que valorizam o quotidiano da família humana, o que mais surpreende é esse poder ter surgido no alvorocer dos tempos, ainda antes da escrita. Dos frescos policromos que revestem as superfícies irregulares das grutas de Lascaux até às criações contemporâneas, acumulam-se obras sublimes que celebram a força criativa do artista.

O cientista Hubert Reeves ensaia uma explicação para o fenómeno afirmando: Os jogos da natureza engendraram uma variedade quase ilimitada de estruturas complexas. O ser humano é uma das mais ricas. O criador artístico entrega-se, ele próprio, a esse jogo de que é fruto, levando mais longe ainda esta busca perpétua de novos esplendores. Tratar-se-á então da transmissão de um dom? O homem comum decerto também o possui, a Natureza, não discrimina. Que fazemos nós os que não somos artistas com esse atributo?

Diz-se que a Natureza é repensada cada vez que um novo artista entra em cena. Como certos lugares desafiam persistentemente os olhos de pintores e poetas, Sintra é um bom exemplo, criam-se teias com muitos fios habilmente entrelaçados, que dão forma aos episódios que respiram na obra de arte. 
 
Articulada por caprichosas arquitecturas, e envolvida num manto vegetal de belo colorido, a região sintrense desprende tão delicado encanto, que a poesia e a pintura, o exaltam século após século.

João Cristino da Silva, pintor do século XIX ampliou a já dilatada fama do lugar com uma obra seleccionada para representar Portugal na exposição Universal de Paris de 1855. Um jornal francês dedicou-lhe palavras elogiosas: O colorido é formoso...Pela desenvoltura vê-se logo que são artistas, ...a obra do senhor Cristino da Silva é uma das mais notáveis que foi apresentada no grande concurso. Mas talvez não seja este, o episódio mais significativo da história do quadro, nem mesmo o facto de o rei artista D. Fernando II, o ter comprado para enriquecer a valiosa colecção particular que possuía. A tela , denominada Cinco Artistas em Sintra, nasceu de uma aventura intelectual, e a Natureza foi a protagonista dessa proeza.

O artista esquece facilmente convenções que têm a chancela de séculos e por isso é sempre difícil prever a rota que as artes seguem. Ao tempo, a pintura realizava-se no estúdio, e os temas escolhidos eram sobretudo históricos, religiosos, ou patrióticos. De repente eis que algo muda e o artista procura a Natureza para tema das suas obras. A tela de Cristino, exibindo cinco artistas que contemplam a paisagem sintrense e registam elementos desse espaço , violou cânones e ignorou os mestres, mas sugeriu as alternativas: a Natureza passava a ser a escola, a luz natural que dava à cena outra força e vivacidade substituía a luz artificial, o artista expressava as suas emoções.

Curiosamente e dando mais força à mensagem, os artistas presentes na tela não nasceram da fantasia do pintor. Eles são companheiros de Cristino da Silva na querela artística e conhece-se o percurso artístico de cada um. Tomás da Anunciação que ocupa o lugar nobre, notabilizou-se na pintura de animais, atrás, de paleta na mão, está Metrass, o mais viajado do grupo e, por isso, informador dos caminhos que a arte trilhava no estrangeiro, junto à enorme rocha, que dá intimidade ao quadro, estão os restantes, José Rodrigues, pintor de costumes populares e Vitor Bastos o autor da estátua de Camões, entre um e outro, está Cristino da Silva.

 
 
Na realidade espacial da tela a imobilidade é só aparente. A mão que criou os seres que a habitam obedeceu a sentimentos tumultuosos, ousados. Talvez por isso, o fascínio da ficção visual impele o espectador para dentro do quadro e nesse momento artistas e saloios agitam-se, ganham vida.

Agradados com o trabalho dos artistas, as crianças, o velho e a rapariga, assistem aos primeiros passos de um trabalho inovador. Por que motivo Cristino da Silva concede este privilégio ao grupo dos camponeses?. Também eles mantêm com a Natureza uma relação muito particular. Serão eles os espectadores ideais?

Só há duas palavras para classificar o comportamento do Homem na sua relação com a Natureza: bom e mau. Quem não é pela Natureza é contra a Natureza. Edgar Morin, com a lucidez que o caracteriza afirma: escritores e poetas efectuam a maternização da Terra. Ao invés técnicos e cientistas efectuam a coisificação da Terra, constituída por objectos a manipular sem piedade. Os gregos terão inventado o mito de Orfeu para os nossos dias?

Os que obstinadamente caminham pela via do erro e, por ambições dementes, mantêm uma relação interesseira com a Natureza, saibam que Orfeu, tocou a lira com tanta doçura que os animais selvagens foram domados pela mão que tangia as cordas.

 

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