Um Caminho de Palavras

Maria Júdice Borralho
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Como escreveu Eugénio de Andrade, as palavras são como um cristal, algumas um punhal, um incêndio, outras, orvalho apenas. Como descrever as mil maneiras de ser árvore e de ser flor, mil maneiras de ser ave e de ser peixe? A palavra, obra-prima da singularidade humana, é preciosidade para o poeta e valor para o cientista.

Antiquíssimos tempos decorrem, e já a palavra anima o panorama mental do Homem que, entre tímido e ousado, explora o cenário natural onde desenvolve uma experiência, a de viver. Percorre os caminhos que se oferecem para o desconhecido, olha o alto e olha ao longe, a luz excita-o, a cor surpreende-o, está numa aventura e não sabe porquê. Entre a diversidade das formas e dos seres - montanhas, planícies, rios, mares, desertos, mil maneiras de ser árvore e de ser flor, mil maneiras de ser ave e de ser peixe - sente-se um estranho. Tudo freme, tudo muda, tudo brilha à sua volta. A fantasia está prestes a explodir como num sonho, é o mito a germinar. Se, como Popper afirma, poesia e ciência nasceram do mito, então este germina na cabeça ou no coração do antiquíssimo Homem?

Forte, expressivo, o pensamento enreda-se nos mistérios cósmicos e esboça o perfil do sagrado. Algumas especulações atribuem à palavra um poder criador. No Livro do Génesis, Deus cria os seres nomeando-os. A magia acontece através da voz de Deus que do nada faz tudo. Disse Deus: Haja luz. E houve luz. … Disse Deus: Haja luminares na expansão dos céus … E assim foi … Disse deus: Produza a terra alma vivente…

 

A palavra, obra-prima da singularidade humana, é insubstituível nas diversas funções da rotina quotidiana, é preciosidade para o poeta que com ela tece jubilosos ou doridos versos por onde passam todas as vozes da humanidade, é valor que o cientista utiliza para ir revelando a história deste Universo em expansão cuja estrutura ainda não acabou de descobrir.

O poeta Jorge Luís Borges adverte: a língua não é, como o dicionário nos leva a crer, invenção de académicos ou filólogos. Pelo contrário, foi desenvolvida ao longo do tempo, durante muito tempo por camponeses, pescadores, caçadores, cavaleiros. Não veio das bibliotecas, veio dos campos, do mar, dos rios, da noite, da madrugada. Há palavras que transportam o peso de uma antiquíssima história e por isso conservam-se em perpétua floração. BELEZA, JUSTIÇA, DEUS são algumas. As suas fronteiras tocam-se, cruzam-se, invadem-se. O oráculo de Delfos pronunciando-se sobre critérios de avaliação da BELEZA afirma: O mais justo é o mais belo; Jesus de Nazaré, certo dia no Templo diz: Eu e o Pai somos um; o poeta José Régio, talvez inspirado nestas palavras do Mestre, ousa afirmar: Deus, sou eu levado à perfeição. Falar de Deus sempre foi e será, uma audácia poética.

A mais simples palavra sai sublimada da pena do poeta: Os olhos da minha amada brilham mais que as estrelas, escreveu Shakespeare; eu sou a água viva, quem beber desta água não mais terá sede, disse Jesus de Nazaré. Que pensará o poeta desta matéria-prima que usa e ajusta ao pensamento?

 

Eugénio de Andrade atribui-lhe violência e fragilidade, São como um cristal, as palavras. / Algumas, um punhal, um incêndio. / Outras, / orvalho apenas. Neruda entusiasma-se: são as palavras que cantam que sobem e descem. Prosterno-me diante delas … Amo-as, abraço-as, persigo-as … Brilham como pedras de cores, saltam como irisados peixes, são tão belas quero pô-las todas no meu poema … Tudo está na palavra … Elas têm sombra, transparência, têm tudo quanto se lhes foi agregando de tanto rolar… de tanto transmigrar de pátria de tanto serem raízes … Jesus de Nazaré compara a palavra à semente que o lavrador lança à terra. Certo dia, estando Ele junto ao Mar da Galileia, reúne-se tamanho grupo à sua volta, que decide entrar num barquinho. O mar ali, o céu alheio e distante e um grupo de gente simples, alguns protagonistas de tristes histórias, olham a jovem figura do Mestre e ouvem estas palavras: saiu o semeador a semear; e aconteceu que, semeando ele, uma parte da semente caiu junto do caminho e vieram as aves do céu e a comeram; e outra caiu sobre os pedregais … mas, saindo o Sol, queimou-se, outra caiu entre espinhos e crescendo a sufocaram e não deu fruto. E outra caiu em boa terra e deu fruto que vingou e cresceu. Órfãos de sonhos, olhos húmidos e tristes, não entendem, o que o Mestre diz, perdem-se no labiríntico discurso. Porém, olhá-lo e ser olhado ou olhada por Ele, isso lhes basta. Era tão jovem ainda! Até os discípulos mais íntimos perguntam: Que parábola é esta? O Mestre responde-lhes: A semente é a palavra.


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