Na Primavera, um breve apontamento sobre a Beleza

Maria Júdice Borralho
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Num período em que os campos se enchem de formas, cores, rumores e cheiros, a Primavera motiva e torna-se pretexto para uma reflexão sobre a Beleza. Como disse o poeta, na Primavera a beleza espreita em tudo o que nos rodeia.

 

1 A Primavera presta-se a enquadrar uma reflexão sobre a BELEZA. Pujança e esplendor revestem a prodigalidade das formas e das cores, rumores e cheiros refinam-se, os campos enchem os nossos olhos das mais perfeitas maravilhas que as forças naturais engendraram, as flores. Exuberante, seivosa e bela, a Natureza apresenta-se num dos seus melhores “momentos”. Como disse o poeta, a beleza espreita em tudo que nos rodeia. (1)

Nem o avanço da Ciência, consegue desfazer a magia que envolve este e outros fenómenos naturais que há 15000 milhões de anos, arrancaram da esterilidade inicial de um caldo indiferenciado e monótono. Percursores da poesia e do discurso científico, os episódios míticos, velhos como o tempo, reflectem elementos preciosos: curiosidade, imaginação, embriões de atitude racional. Sobre a BELEZA e o renascer primaveril narram os mitos que, anualmente, a Terra fica grávida do Sol. Acrescentam ainda que esta luminária e sua irmã gémea BELEZA, nasceram de uma flor de lótus. Ao emergir das águas, a bela flor, abre as pétalas e o nascimento consuma-se: o Sol, sacudindo e refulgindo, (2) sobe para o trono real que o aguarda, a BELEZA, lenta e lânguida, espalha-se pelo mundo. Explicações ingénuas que olhares interrogativos e mentes curiosas conceberam. Como disse o filósofo Ciência e poesia têm uma origem comum e essa origem é o mito. (3)

2 Espectador de sucessivas Primaveras o ser humano tende a banalizar o evento natural e, se o faz, não entende a mensagem que a Natureza transmite. Porém, do mais comum ao mais notável, o Homem possui a capacidade de avaliar sentimentos. Se vive uma experiência estética (lê um livro, contempla uma paisagem, uma obra de arte, ouve um trecho musical) ou vive a experiência de um quotidiano, competitivo, quezilento e fanático, distingue bem os sentimentos que advêm das diferentes situações. É que, da beatitude à angústia, da felicidade à raiva, os sentimentos possuem como ingrediente essencial um componente de dor ou de prazer.

António Damásio, prestigiado cientista que estuda o modo como os sentimentos e as emoções moldam a condição humana, esclarece: os sentimentos são acontecimentos mentais proeminentes, têm o poder de chamar a atenção para as emoções de onde provêm e para os objectos que desencadearam essas emoções. Com a palavra objecto o cientista refere entidades tão diversas como uma obra de arte, um lugar, um pôr-do-sol sobre o oceano, uma equação matemática, o mal-estar de uma doença.

Os objectos estéticos, inscrevem-se no conjunto das mais singulares realizações que o ser humano produz. Eles afectam, comovem, modificam. Rudolf Arnheim afirma que a arte é moral na medida em que desperta. Contemplar a tela de Botticelli Alegoria da Primavera tranquiliza e reanima, escutar o esplendor extraordinário de A Sagração da Primavera de Stravinsky, fascina. A Primavera colabora com o artista, a BELEZA convida a presença da felicidade.

O que é então a BELEZA? Que ideias satélites gravitam à sua volta? É possível descrevê-la? Por que é que a BELEZA é tão difícil de definir estando ela perante os nossos olhos? E por que é tão frágil que ao menor deslize esvai-se? Através dos séculos onde foi o Homem colocando o rótulo de Belo?

3 A irresistível Beleza de Helena de Tróia ficou célebre, mas a fealdade exterior de Sócrates que resplandecia de BELEZA espiritual ficou mais célebre ainda. A BELEZA encontra-se muitas vezes associada a qualidades; oráculo de Delfos disse que o mais justo é o mais belo, e há quem diga que belo é o que se ama.

Percorrendo as 438 páginas do livro A HISTÓRIA DA BELEZA, dirigido por Umberto Eco, sente-se o modo como pelo fluir dos tempos, se concebeu a BELEZA do corpo humano, do mundo natural, das ideias, do paraíso, do inferno. Documentada com obras de arte e muitos textos antológicos esta obra declara algo de muito importante: formas de paixão, ciúme, vontade de posse, inveja ou avidez não têm nada que ver com o sentimento do Belo...: foram os artistas, os poetas, os romancistas que nos contaram através dos séculos o que consideravam belo e nos deixaram exemplos disso...

António Gedeão e Rui Belo, escreveram dois poemas que confirmam a última parte da citação. Cantam a BELEZA e o AMOR, falam da perplexidade perante o mistério da vida.

António Gedeão dedicou os seus versos a uma árvore. Chama-lhe feiticeira dos cabelos verdes... prazer dos meus olhos estáticos e pede-lhe: ensina-me a transformar um raio de sol nesses perfumes subtis que a toda a hora perdes prolongando o teu ser no ar que te emoldura. Rui Belo, dedicou o poema a uma estátua. Depois de passar por várias esculturas que, segundo, informa não mereceram mais que um apressado olhar o poeta afirma: na tua presença eu tenho de parar/ dama desconhecida com certeza viva mais aqui/ que no segundo século em roma onde viveste/ moldaram-te esse rosto abriram-te esse olhar...para que uns dezoito séculos mais tarde te pudesse encontrar quem ...te ama ó mulher perdidamente.

Curiosamente os poemas têm o mesmo título: DECLARAÇÃO DE AMOR
Há quem defenda que um poema vale pela magia das últimas palavras. A árvore e a estátua inspiraram os seguintes finais:

É através de ti, ó árvore, que celebro os esponsais entre mim e a Natureza.
É através de ti que bebo a nuvem fresca e mordo a terra ardente
É de ti que recebo as leis do Amor e da Beleza.
Amo-te ó árvore, apaixonadamente!

e

Não te importas mulher deixa-te estar
não penses não te mexas podes estar certa
de que me deste mais do que tudo o demais que me pudesses dar
pois para ser diferente de quem era
bastou-me ver teu rosto e mais que ver olhar

A árvore de António Gedeão estará a viver mais uma Primavera, arrepia pensar que alguém poderá ter tido a ousadia de cortá-la. A estátua da bela romana decerto continua a fascinar muitos visitantes no museu onde se encontra. Mas a incómoda pergunta persiste: que é afinal a BELEZA?

Será o coração recto e puro dos homens o templo da BELEZA?

No plano geográfico o ser humano percorre quilómetros viajando de um espaço para outro, no plano pessoal, a viagem dirige-se sempre para o interior de cada um, para aquele lugar onde a plenitude e a pacificação do Eu são possíveis.Uns estarão perto do santuário, outros, ainda longe, mas o importante é ter iniciado a peregrinação.

(1) Jorge Luís Borges
(2) António Gedeão
(3) Karl Popper

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