Visita de William Beckford a Sintra

Maria Júdice Borralho
Imprimir
Texto A A A

O slogan Amar a Natureza para Respeitá-la está ainda pouco batido. Uma visita de William Beckford, escritor romântico do séc. XVIII, a Sintra ilustra um momento de inspiração poética e de enlevo estético, que vale a pena transmitir.

1. Ampliando o significado das palavras "prosa" e "poesia" cremos que a vida é urdida por este dualismo. Ora prevalecendo a "prosa", ora dominando a "poesia", ou ainda fundidas numa justa proporção, ambas entretecem o ser do Homem. Infelizmente, a primazia dada ao crescimento da tecnocracia, relega tantas vezes para segundo plano a dimensão poética da vida a que a festa, o mito, o amor, o êxtase dão forma. "É agindo sem descanso que o homem manifesta a sua grandeza", afirma o FAUSTO de Goethe.

As consequências negativas que daí advêm são de vária ordem e reflectem-se em vários sectores da existência, nomeadamente no universo das relações entre ambiente natural e sociedade humana. Para eliminá-las proliferam as iniciativas e multiplicam-se as regras, mas descura-se uma circunstância, MOSTRAR A NATUREZA. Tal MOSTRA, desenvolveria hábitos de observação, atitudes de admiração e respeito, e desencojaria a agressão.

O "slogan" AMAR A NATUREZA PARA RESPEITÀ-LA está pouco batido. Muitas das obras de poetas, escritores e pintores de paisagens, "ensinariam" a descobrir a beleza e magia da Natureza e a captar-lhe o espírito, se fossem analisadas com esse propósito. 
 
2. A descrição de um certo passeio realizado pelo escritor inglês William Beckford no dia 19 de Setembro de 1787, merece ser recordada, mesmo tendo em conta, as diferenças existentes entre aquela pretérita época histórica e a nossa. Muitos motivos justificariam a evocação do texto, mas só dois são importantes para esta reflexão. Em primeiro lugar porque o espaço percorrido é um lugar de excelência, alvo de cobiças e, por isso mesmo, exposto a perigos de vária ordem. Depois, porque constitui um documento de raro valor a vários níveis, nomeadamente no capítulo do relacionamento HOMEM / NATUREZA.

 

 

A jornada de alguns quilómetros, iniciada ao romper do dia foi percorrida a cavalo rumo ao destino escolhido: uma parcela da costa portuguesa onde, o mar encontra uma poderosa barreira formada por altos e íngremes rochedos de configuração quase vertical. A força das vagas, exerce aí tamanha acção erosiva, que cavou um labirinto de grutas. A curta distância, situa-se um fojo de grande profundidade que faz arrepiar quem ensaia vislumbrar o seu fundo. Esta arquitectura da beira-mar e o oceano ilimitado alisado de Sol, inspiram as palavras do ilustre e culto viajante inglês, que afirma: "A costa é realmente pitoresca, tem projecções audazes entremeadas de rochedos piramidais que se sucedem uns aos outros em perspectiva teatral . da borda do abismo onde estive uns poucos de minutos, como preso por uma fascinação, descemos por uma vereda sinuosa de quase meia milha até ao fim da rocha. Ali achámo-nos quase encerrados no meio de lascados rochedos e de grutas - um fantástico anfiteatro o mais bem calculado que se poderia imaginar para recreio das ninfas do oceano".

No interior de uma caverna, o cenário natural, a imaginação e o conhecimento das lendas do lugar e da história dos lusitanos, estarão na origem destas palavras:"Não admira que a ardente e susceptível imaginação dos antigos, inflamada por aquele cenário os induzisse a acreditar que percebiam as conchas dos tritões ressoando nestas recônditas cavernas nem que alguns sisudos lusitanos declarassem positivamente, que não só as tinham ouvido, mas que as haviam visto e enviassem um mensageiro ao imperador Tibério, para lhe dar conta do caso, e congratular-se com ele por uma tão evidente e auspiciosa manifestação da divindade".

Se na beira-mar desceu às grutas "fantásticas" no caminho que até lá percorreu William Beckford subiu ao topo de "montes bravios e ermos". Num deles onde não pôde demorar-se "metade do tempo que desejava" viveu uma experiência singular que o transportou ao universo do sagrado: "esta fresca brisa impregnada do perfume de inúmeras ervas e flores aromáticas, parecia infundir um novo alento nas minhas veias e um quase irresistível desejo de me frotar por terra e adorar neste vasto templo da Natureza a origem e a causa da vida".

 
 
Percorreu ainda uma "estrada, que serpeia entre rochedos" explorou recantos e esconderijos "seguindo o curso de um cristalino e murmurante ribeiro, que forma uma cascata entre moitas de alfazema e rosmaninho do mais desmaiado verde" encontrou uma "deliciosa aldeia".

Outras frases contidas na descrição do passeio de 17 de Setembro confirmam que William Beckford terá experimentado emoções bastante intensas: "tão formoso dia como este nunca vi", "nem azul do céu de tamanho encanto", "enseadas como estas . nunca vi", "nem ouvi em nenhuma outra costa branir as ondas com tanto estridor".


3. O relato do passeio realizado pelo escritor inglês representa um hino a Sintra.
A "aldeia deliciosa" é Colares, o rochedo piramidal A Pedra de Alvidrar e o lugar onde sentiu o irresistível desejo de "adorar a origem e a causa da vida" situa-se no Castelo dos Mouros.

Passaram-se mais de duzentos anos e hoje a paisagem sintrense está protegida. De quê ? De quem ?

A escritora Sueca Selma Lagerlöf em A MARAVILHOSA VIAGEM DE NILS HOLGERSSON resume de um modo surpreendente o "espirito" de um espaço protegido. Quando Nils, transformado em duende, se prepara para retomar e deixar os gansos selvagens que acompanhou à Lapónia, Akka a velha gansa dirige-lhe estas palavras:

SE APRENDESTE VERDADEIRAMENTE ALGO DE BOM ENTRE NÓS, TERÁS ABANDONADO A IDEIA DE QUE OS HOMENS DEVEM ESTAR SÓZINHOS NA TERRA. PENSA EM COMO É GRANDE O PAÍS QUE TENDES! SERÁ QUE NÃO PODEIS DEIXAR-NOS ALGUNS ROCHEDOS NUS SOBRE A COSTA, ALGUNS LAGOS E PÂNTANOS NÃO NAVEGÁVEIS, ALGUNS CAMPOS DESERTOS E ALGUMAS FLORESTAS AFASTADAS ONDE NÓS OUTROS, POBRES ANIMAIS, POSSAMOS VIVER TRANQUILOS?

Assim se revela a ideia de uma convivência não destrutiva entre o meio natural e a sociedade. William Beckford é o exemplo de uma relação sublime e, dela decorrem, várias interrogações. Uma poderá ser esta: A costa sintrense que tanto impressionou o escritor inglês está a ser devidamente protegida?

Comentários

Newsletter