Na despedida da Primavera

Maria Júdice Borralho
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No momento em que a Primavera dá lugar ao Verão é tempo de cantar a sua beleza em mudança. A Primavera não falou aos distraídos nem aos indiferentes, muito menos aos profanadores, mas regenerou os campos e os poetas.

Silenciosamente a Natureza fez a sua obra e a Primavera chegou na hora certa. Tranquilamente porém, caminha para o fim. Em breve, deixará as fantasias que criou à estação que se segue. Entretanto, ainda paira o intenso aroma das laranjeiras e das tílias, ainda esvoaçam borboletas em coloridos recreios amorosos e os habitantes vegetais que povoam a paisagem, ainda mantêm o esplendor próprio do tempo1. Tudo resplandece sob um Sol primaveril.

Que ficará desta Primavera? Apenas o que vai garantir a existência das novas Primaveras? Beleza e pujança vão ser esquecidas ou acrescentarão novas paisagens para o pensamento?

A linguagem fala das experiências humanas, universo que vai do banal ao sublime, e as palavras que as descrevem, podem falar da beleza dos momentos que fomos capazes de viver. Sobre certa Primavera em final de ciclo, Fernando Pessoa escreveu:

A Primavera esquece nos barrancos
As grinaldas que trouxe dos arrancos
Da sua efémera e espectral ledice

Maravilhas que a imaginação tece.

Será o amor pela beleza responsável pela veneração do milagre da Primavera e do cunho divino que o envolve?

A beleza, cantada século após século por poetas, pintores, e romancistas, está à nossa volta. A beleza é uma experiência íntima, implica simultaneamente a realidade e o observador. Mas o Homem também gosta de entender o que observa e entre o contemplar e o compreender há um caminho sinuoso que só ciência, arte e a religião ousam explorar. Se nos bastidores do teatro maquinarias complexas e artifícios engenhosos trabalham para o êxito do espectáculo, nos bastidores da Primavera, bem mais misteriosos, multiplicam-se interrogações. Como é que a Primavera faz o que os nossos olhos maravilhados contemplam? De quantas invenções é capaz a Natureza? A ciência explica todos os fenómenos? Ciência e arte e religião excluem-se ou completam-se?

Alguns cientistas observam o mundo natural com olhos de poeta. O produto das suas reflexões tem o valor acrescido de proceder do universo científico. Hubert Reeves afirma que a Natureza criou um ser, especial: deu a si própria os meios de prosseguir e prolongar a sua actividade favorita lançou no mundo um trabalhador capaz de usar as suas próprias receitas. Sobre a relação entre ciência e poesia acrescenta: as visões científica e poética do mundo longe de se excluírem associam-se para nos fazer perceber o mundo na sua verdadeira riqueza.

 

Um romancista, um historiador das religiões e um pintor, de certo modo, ilustram esta visão do cientista.

Ferreira de Castro no livro A Selva tentou compreender o que se passa nos bastidores da Natureza e sentiu uma terra quente em perpétuo trabalho possuída pela febre da gestação.

Mircea Eliade, autor do livro O Sagrado e o Profano encontrou relações profundas entre Primavera e religião. Ele afirma que o mistério da regeneração periódica do cosmos fundou a importância religiosa da Primavera ... a contemplação estética da Natureza conserva ainda mesmo para os letrados mais sofisticados um prestígio religioso. 

Cézanne fez uma afirmação que só interpretações desassisadas podem desvalorizar: Um quadro contém em si até o odor da paisagem

Nos enredos do comportamento humano, alegrias e tristezas tecem a teia do quotidiano. Procuramos a felicidade e sabemos que a Natureza é hábil em suavizar pequenos sofrimentos da vida e gerar sentimentos que restauram equilíbrios. Céu azul, brilho primaveril, beleza serena não alimentam angústias nem depressões. Mas a Primavera não fala aos distraídos, nem aos indiferentes, muito menos aos profanadores, os que sofrem de pobreza espiritual, mal que ricos e pobres padecem em comum. No poema que se segue de Fernando Pessoa as mágoas do poeta afloram

Quando tornar a vir a Primavera
Talvez já não me encontre no mundo
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo

Por que motivo se julgava ele o único amigo da Primavera? É um exagero poético ou uma profecia? O tempo vai revelar.


 
 
 
Entretanto talvez fique na memória de muitos a beleza, os odores, os movimentos e a força serena. Sobre as crianças nascidas nesta estação, deseja-se muito que zelem e amem as futuras Primaveras


1 Na paisagem Sintrense

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