Do Sobreiro na Terra ao Sobreiro na Tela

Maria Júdice Borralho
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2. Quando um sobreiro é protagonista
O sobreiro é uma árvore perfeita na ordem do imaginário. Mesmo em terrenos pobres e com condições climáticas adversas reproduz-se. Nenhuma árvore dá mais exigindo tão pouco, afirma o Engenheiro Silvicultor Vieira Natividade no livro SUBERICULTURA. Desconhece-se o motivo que levou o artista a escolher para protagonista do quadro um exemplar, de tronco tortuoso e ramo mutilado. Terá o sobreiro perdido a expressão altaneira e expansiva, pelos temporais sofridos, ou pelo peso da história que carrega?
Por ser assim árvore preciosa, tem a memória atulhada de factos. Uns contrariam, outros favorecem-lhe a sobrevivência. Se esquecermos os fósseis encontrados, a odisseia do sobreiro em Portugal, aquela que o tempo não apagou, remonta ao início da nacionalidade. São acontecimentos passados porém, repetem-se em cada geração. Fogos, abates clandestinos, extracção exagerada de cortiça, cortes na ramagem, doenças e pragas, sucedem-se no longínquo e no próximo. Já em 1310 D. Dinis exige que se não faça dano nos sobreirais. Alguns estragos são feitos por sede de lucro, outros por fome de pão. Nas cortes de Évora (1481-1482) D. João II ouve estes lamentos: vossos povos gemem de verem nascer a cortiça nos montes maninhos e desertos…e não ousam colhê-la nem se aproveitar dela por causa dos tratos e graves penas que por isso são postas. Estes e outros longínquos antecessores de D. Carlos reconheceram o valor do sobreiro e zelaram, melhor ou pior, pela sua conservação. No ano em que a tela foi pintada, Portugal exportou cerca de cinquenta toneladas de cortiça.
Torcido, mutilado, inclinando-se sobre o caminho que lhe passa à beira, o sobreiro da tela atrai de imediato a atenção do observador. Grossas e onduladas raízes brotam da terra. Destas e do robusto tronco saem forças que se estendem pelos ramos do centro para a periferia. Adivinha-se pertinaz seiva percorrendo-o e transportando pacotes de energia. Quantos dos sobreiros do montado próximo, são “filhos” seus? Quantas glandes levadas pelos elementos por lá germinaram? Quantos gaios por ali as enterraram, quantas ficaram esquecidas e saíram da terra, altearam centímetro a centímetro, palmo a palmo?

 

3. Caminho em estado de hibernação funcional
Adivinha-se o artista esquecido dos negócios do reino, concentrado diante da tela em branco, com o propósito de povoá-la de formas. Considera, prevê, dá a primeira pincelada com fino gesto, outra se segue e outra e outra. O acto de criar, tal como as ideias de felicidade e de destino, aproximam-se do sagrado. Já o sobreiro está na tela inclinado sobre solitário caminho cujas marcas deixadas pelos dias vulgares, revelam que várias coreografias já passaram por ali.


Ao pôr-do-sol os bois regressam ao estábulo e os rebanhos ao redil. Cascos e rodados deixam marcas no caminho. Os chocalhos, seu tilintar metálico, a tagarelice dos pássaros que repetem todos os dias a mesma canção e outros sons perdidos, animam a paisagem. Pastor e boieiro arrastam-se, vidas de abstinência forçada, demasiado banais, quantas vezes no extremo limite do suportável. Outros sulcos mais além informam que a coreografia progride com novas cenas. Talvez sejam sinais deixados por velhinha curvada sob enorme molho de lenha, marcas de cão manco abandonado por caçadores, vestígios de cabra irrequieta.
 Na tela o caminho mantém-se numa hibernação funcional. O que a realidade não pode, a evasão para a fantasia consegue: o caminho, galga o limite do quadro e conquista a intimidade de novos espaços. Elástico, ligeiro, sobrevoado por pássaros inventados, leva um propósito: procurar o lugar habitado por uma edição melhorada de homens e de mulheres.

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