A percepção da Natureza pelo Homem: a influência da Tradição Judaica

Nuno Cruz António
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A visão humana do “natural” tem sofrido profundas alterações ao longo dos tempos, seguindo a própria História do Homem. A Tradição Judaica teve uma inquestionável influência no nosso conceito e percepção da Natureza.

A Tradição Judaico-Cristã exerceu uma fortíssima influência na atitude dos Europeus que descobriram e colonizaram terras noutros continentes. A sua história inclui episódios de sobrexploração de recursos naturais e de algum desrespeito pela Natureza. É, no entanto, importante fazer-se uma análise cuidada reportada à época e, principalmente, ter algum conhecimento sobre a génese destas atitudes. Na tradição judaica encontramos parte das suas razões explicativas.

Os autores dos textos bíblicos conferem ao selvagem um papel de destaque, tanto de elemento descritivo, como de conceito simbólico. Para melhor se compreender este facto é importante ter presente que os antigos hebreus habitavam áreas extremamente áridas, onde a quantidade de precipitação, que podia ser inferior aos 100 mm anuais, era um factor extremamente limitante para a sua sobrevivência. Com o intuito de distinguir estas zonas de outras de “terra boa”, com melhores solos, onde era possível realizar cultivo, os hebreus utilizaram diversos adjectivos que invariavelmente acabaram por ser traduzidos para selvagem ou bravio. Vivendo num clima tão rude não é de espantar que as populações temessem e, mesmo por vezes, odiassem a Natureza. Como esta não podia ser controlada e, na altura, nem sequer suficientemente compreendida pelo Homem, era atribuída uma explicação religiosa aos seus fenómenos.

 
 
 

O ano ser chuvoso ou de seca dependia, para as populações, de Deus estar satisfeito ou irado. A identificação da terra árida, selvagem, bravia, como resultado do descontentamento de Deus, deu-lhe uma conotação mefistofélica, demoníaca. O folclore hebraico muito contribuiu para tal, povoando o bravio com demónios e espíritos malignos. Entre eles temos o dragão uivante Tan, o demónio-mulher alado Lilith e o homem-bode Seirim, todos eles chefiados por Azazel, o arquidemónio dos lugares selvagens. Sempre que uma comunidade desejava expiar os seus pecados, estes eram “depositados” numa cabra que era conduzida até aos limites da área de terra cultivada, de onde era enviada para a terra bravia, erma, ao encontro de Azazel. É neste ritual que se encontra a origem da cerimónia do “cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” e um forte moldador da opinião judaica sobre o “bravio”.

 
 
 

No Antigo Testamento, todas as referências ao paraíso descrevem-no como um local com características totalmente opostas às atribuídas ao selvagem. O Jardim do Éden possuía abundância de água e plantas. Adão e Eva, após terem aceite o convite da serpente para provar a maçã, foram expulsos do paraíso para a terra amaldiçoada, bravia, selvagem. Aqui encontramos uma das mais decisivas influências na oposição entre o paradisíaco e o selvagem, que vingou no pensamento do mundo ocidental.


 
 

Um outro momento da história do povo israelita, também muito importante no modo como o selvagem foi mais tarde encarado, foi o êxodo do Egipto. Sob a liderança de Moisés, os hebreus, com a ajuda de Deus, vaguearam pelo deserto do Sinai durante 40 anos. Esta tão marcante experiência conferiu também ao selvagem uma conotação de santuário, local afastado da sociedade pecadora, privilegiado para o encontro com Deus e, principalmente, como local de teste, cuja recompensa em caso de sucesso seria a entrada na Terra Prometida. O bravio nunca perdeu a conotação de dureza, mas também de refúgio e de força disciplinadora. O Êxodo acabou por dar origem a uma tradição de se ir para o selvagem como forma de procura e purificação da fé. Este era invariavelmente o destino apontado pelos líderes religiosos, quando sentiam que a sociedade se degradava. Dois exemplos são os profetas Jeremias e Elias.

A imagem do bravio como santuário, local de purificação, teve continuidade na tradição cristã. Mas desta falaremos num próximo artigo.

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