Anfíbios: uma vida dupla de adoração e discriminação

Filipa Martins
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Ao longo da história humana, os anfíbios têm sido encarados das mais diversas formas pelas diferentes culturas, flutuando entre a adoração e a repulsa. Conheça um pouco dos mitos e lendas associadas a este grupo tão especial de animais.

Umpin voltou a apontar a varinha para mim:
– Odeia o sapo, se quiseres! Só te peço que lhe dês um beijinho na boca. Se não, jamais chegaremos ao palácio do príncipe e, sem palácio, não há história.
Não tinha outra opção possível. Se eu desobedecesse, ele podia transformar-me em sapo com a varinha mágica. Se um sapo se pode transformar em príncipe, o contrário também é possível.
Então baixei-me e, ao beijá-lo, o sapo besuntou-me os lábios de baba.


Excerto de “O Palácio do Príncipe Sapo” de Jostein Gaarder


Apesar de estarem em risco de extinção, o Homem não se comove. Apesar de manterem um lugar especial em algumas culturas, onde são acarinhados como símbolos de fertilidade, boa sorte e eternidade, e eleitos protectores das chuvas, noutras são menosprezados, considerados animais malignos com associação ao Dito Cujo. Os anfíbios têm sido igualmente adorados e perseguidos como personagens de contos, ingredientes da medicina popular, seres espirituais ou simplesmente como alimento.

Apesar da maioria destes animais ser absolutamente inofensiva, existem por todo o mundo mitos, crenças populares e superstições que não correspondem de todo à verdade.

 

Os Anfíbios na Religião e na Cultura

 

ÉPOCA PRÉ-BÍBLICA

Acredita-se que o Xamanismo, que remonta à Idade da Pedra, deu origem a todas as religiões. O Xamã era o líder, desempenhava o papel de mediador entre o seu povo e o mundo espiritual. Os sapos eram importantes para o Xamã não só pelo seu valor simbólico como pelo seu uso em bebidas alucinogénicas.

Nas culturas asiáticas antigas e nas civilizações pré-colombianas das Américas, o sapo era considerado como uma divindade, a grande Mãe Terra, a origem e o fim de toda a vida.

A economia dos antigos egípcios era centrada no Rio Nilo, onde as rãs eram abundantes. A deusa egípcia da fertilidade e do nascimento, Heqet, é geralmente retratada com uma cabeça de rã. Quando as águas do Nilo recuavam, ouviam-se inúmeras rãs a coaxar na lama, o tipo de evento que pode ter influenciado muitos mitos. De acordo com outro mito da criação egípcia, as oito criaturas originais eram sapos e cobras que carregavam o ovo cósmico. Lâmpadas e amuletos com forma de rã eram colocados nos túmulos egípcios para afastar os demónios do submundo.

Já nas escrituras da religião persa (zoroastrianismo) referem-se à rã como uma das primeiras criaturas a emergir das águas escuras e profundas, como parte de uma praga criada pelo demónio Ahriman.


A BÍBLIA

Na religião cristã, os anfíbios são citados de forma negativa: uma das pragas do Egipto foi um exército de sapos que varreu as terras. Contudo, a praga do êxodo em massa de rãs  da água é antecipada por uma praga da poluição da água e sucedida por uma praga de insectos,  pelo que parece ser uma referência com pouco teor profético. No Novo Testamento, demónios com forma de rã saltam da boca do Dragão, da Besta e do Falso Profeta.

Segundo a Bíblia, quando o faraó recusou a saída do povo de Israel do Egipto, Moisés foi enviado com a ameaça de o rio transbordar sobre eles e, considerando as rãs seres imundos, elas iriam poluir todo o seu palácio e iriam mesmo andar sobre ele, sobre os seus cortesãos e subordinados.

Embora a maioria da tradição hebraica trate estes animais com repulsa, alguns intérpretes rabínicos durante a diáspora têm reconhecido as rãs do Egipto como defensores heróicos da fé, dispostos a abraçar o martírio de serem queimados vivos.

 

BRUXARIAS E MEZINHAS

Desde a Idade Média que bruxas e sapos estão intimamente ligados. Segundo alguns relatos, as bruxas coabitavam com anfíbios e vestiam-nos, chegando mesmo a serem citados em julgamentos como familiares das bruxas. Houve muitos relatos de rãs ou sapos que emergiam da boca de uma mulher, um evento que poderia ser entendido como prova de feitiçaria. As secreções da pele dos sapos estavam incluídas na lista de ingredientes populares de poções mágicas.

Nesta época, pensava-se que as salamandras conseguiam sobreviver ao fogo e que as árvores onde elas tocassem davam frutos envenenados. Existia também a superstição de que para um homem saber os segredos de uma mulher, ele primeiro tinha de cortar a língua a um sapo vivo. Depois de libertar o sapo, o homem tinha que escrever certos encantos na língua e colocá-lo no coração da mulher. Assim ele poderia fazer perguntas às quais a mulher responderia com a verdade.

Acreditava-se também que os sapos tinham pedras preciosas dentro da cabeça, que eram efectivamente procuradas pelos alquimistas pelas suas propriedades mágicas, especialmente para detecção ou neutralização de veneno.

Em Portugal, os anfíbios ainda são usados em bruxaria, em práticas de voduísmo com a aplicação de alfinetes e outros adereços em sapos-comuns (Bufo bufo), e em medicina alternativa, onde a barriga de sapos-corredores (Epidalea calamita) evidencia poderes curativos quando atacados a feridas, as quais saram mais depressa que qualquer outro medicamento convencional. As cinzas de salamandra eram utilizadas na cicatrização de úlceras e, hoje em dia, ainda são consideradas vermífugos e antídotos contra mordeduras de serpentes.



ANFÍBIOS E A ARTE

Na arte, os anfíbios eram retratados como símbolo do Diabo e da punição. Muitos pintores do início do Período Moderno exibiram obras com demónios forçando os condenados a comer sapos no Inferno. Hieronymus Bosch retratou uma mulher condenada a copular com um sapo na sua pintura “Os Sete Pecados Capitais”. Outros ilustravam sapos antropomórficos ou rãs a cozinhar e a devorar seres humanos.

CULTURAS INDÍGENAS

Os anfíbios têm um papel importante no quotidiano dos povos indígenas, com diferentes utilidades consoante as tribos, mas embora elas se sirvam deles para o seu bem-estar, são valorizados e respeitados.

Para as tribos americanas nativas a rã simboliza geralmente a chuva.

Os ameríndios da Colômbia esfregam os dardos de caça pelo dorso de rãs-dardo-dourado (Phyllobates terribilis), chegando por vezes até a golpear as rãs com as setas, para envenenar o dardo e criar um projéctil mortal, que é então atirado aos macacos nas árvores.

Por seu lado, os caçadores de algumas tribos indígenas da Amazónia esfregam as secreções da pele da rã-macaco-gigante (Phyllomedusa bicolor) em queimaduras auto-infligidas. As toxinas dessas secreções provocam náuseas e alucinações nos caçadores, que afirmam melhorar a atenção e aumentar o sucesso de caça.


Os aborígenes australianos usam as Litoria platycephala como fonte de água durante períodos de seca – cavam buracos em lagoas secas até as encontrar e, em seguida, esguicham a água armazenada na bexiga para a boca. Contam a história de uma rã que certa vez engoliu toda a água da terra. Houve uma grande seca, e os animais decidiram que poderiam salvar-se apenas fazendo rir a rã. Mas a rã permaneceu imóvel às suas cómicas tentativas até que a enguia dançou, torcendo e rodando desajeitadamente. Então, a rã começou a rir à gargalhada, libertando assim os rios e os lagos.

 

LENDAS ORIENTAIS

Para os povos orientais, os anfíbios já apresentam alguma plasticidade conotativa, embora a maioria seja negativa.

Na China, os sapos foram um dos cinco animais venenosos, mencionados juntamente com o escorpião, centopeia, aranha e cobra.

Segundo reza a lenda chinesa, o eremita Liu Hai descontaminou um charco ao atrair para fora o sapo Ch'an com um punhado de moedas de ouro. Ele matou o sapo, punindo assim o pecado da avareza. No entanto, Liu Hai tem sido muitas vezes retratado com Ch'an carinhosamente sentado a seu lado como uma espécie de animal de estimação, e um sapo com uma moeda na boca é um símbolo de grande riqueza.

Um sapo com três pernas foi muitas vezes descrito na Lua, em que cada perna representava cada uma das três fases lunares. Afirmam os chineses que os eclipses ocorrem quando o “sapo na lua” tenta engolir a própria lua.

O filósofo japonês do séc. XVIII Shoeki Ando, um crítico implacável da arrogância humana, escreveu que o sapo uma vez rogou para andar erecto como uma pessoa. Essa dádiva foi lhe concedida, mas então ele descobriu que, com os seus olhos focados apenas no Céu, já não conseguia ver por onde ia. Quando lamentou o seu pedido, o Céu devolveu-o ao seu estado original. Tinha, o sapo explicou, sido como alguns sábios (Sakyamuni ou Lao-tzu), “olhando apenas para as alturas, não conseguia ver os oito órgãos dos seus próprios sentidos…”.

CULTURA POPULAR (TAMBÉM) PORTUGUESA

O ser viscoso e peçonhento

A aparência viscosa destes animais deve-se ao facto de terem a pele “nua” (sem pêlos, penas ou escamas), que tem de estar ininterruptamente hidratada, uma vez que estes animais utilizam tanto os pulmões como a pele para respirarem. A pele é geralmente brilhante devido às secreções cutâneas que a cobrem.

O “coxo”, as verrugas e a cegueira

Ao manuseio de sapos e salamandras estão associados males de pele, referidos em alguns locais por coxo, e o aparecimento de verrugas. A maioria dos anfíbios é inofensiva e as secreções cutâneas dos anfíbios destinam-se simplesmente a protegê-los contra predadores e só actuam em contacto com mucosas (boca, nariz e olhos), causando alguma irritação passageira, no entanto se ingeridas poderão provocar má disposição e alucinações. Por isso, basta lavar as mãos imediatamente a seguir ao seu manuseio, e beijar sapos está fora de questão, até porque príncipes encantados só em contos de fadas.

Outra crença popular é que a urina destes animais, normalmente projectada durante o seu manuseio, provoca cegueira, o que também não é verdade. A libertação de urina é igualmente utilizada para defesa, por ser algo inesperado e desagradável para os predadores, e não porque possua substâncias nocivas, com o fim de cegar.

Salamandras e o fogo

A salamandra-de-pintas-amarelas (Salamandra salamandra), presente em Portugal, exibe uma coloração invulgar (manchas amarelas e por vezes vermelhas) e por essa razão é erradamente associada às forças das trevas desde a Idade Média, sendo conotada como um animal demoníaco que nasce das chamas, que cospe fogo e consegue atravessá-lo sem se queimar – em muitos locais é chamada de salamandra de fogo.

A crença de que a salamandra nasce do fogo deve-se ao facto de, na ocorrência de incêndios, elas serem vistas a saírem do interior das zonas afectadas, o que pode ser explicado pelo simples facto de, tal como os outros animais, elas estarem a fugir pela sua sobrevivência.

Chuvas de sapos

Uma crença mais inofensiva é a das “chuvas” de sapos, que corresponde ao fim da hibernação de muitas espécies de sapos e ao início das suas migrações em busca de locais de reprodução, quando cai uma chuvada intensa, após uma seca prolongada. Como surgem repentinamente com a água, saltando e invadindo terrenos e ruas, muita gente julga terem caído do céu.
 
Anfíbios venenosos

A maioria das espécies de anfíbios não é venenosa, apenas segrega substâncias tóxicas, mas benignas, geralmente com efeitos irritantes  passageiros. As espécies venenosas só constituem perigo para os animais que as tentem ingerir.

Acredita-se que a mordedura de salamandra-de-pintas-amarelas é venenosa, o que não tem qualquer fundamento, pois as salamandras mesmo quando manipuladas não mordem.

… e mais crendices e superstições (sem fundamento)

“Um bocado de pão dentado, se for dado a um sapo, por qualquer pessoa que nos queira mal, mirra-se o sapo e mirramo-nos nós.”

“Quando um sapo nos fita é preciso dizer de repente, três vezes, cuspindo sempre fora: «Santos em mim / Quebrantos em ti.»”

“Quando se encontra um sapo e por acaso se lhe dá pancada, é necessário acabar com ele de todo, senão vai ter com a pessoa à cama.”

“Quando um sapo entra em casa, é preciso ir ver logo se ele tem os olhos cosidos, para lhos descoser, porque se não se faz isto, a pessoa a quem fizeram feitiçaria com ele, morre imediatamente.”

Algumas pessoas acreditam que as rãs foram geradas espontaneamente a partir da terra e da água e que conseguem sobreviver nas rochas durante séculos.

Os anfíbios, sendo considerados animais nocivos, são espetados em canas, servindo como espantalhos, para afugentar os outros sapos que ficam com medo e, portanto, se afastam.

SABIA QUE…

O símbolo hieroglífico egípcio para "cem mil" tem a forma de um girino, pois muitas espécies de anfíbios são capazes de produzir milhares de ovos por postura, de onde eclodem pequenos seres, cabeçudos, com forma de peixe e sem membros, denominados de girinos.

Engolir sapos é uma expressão que vem dos antigos romanos, que muitas vezes sentiam-se contrariados frente às ordens de César.

A Rã não é a fêmea do Sapo. Embora sejam os dois anuros (anfíbios sem cauda), são animais distintos. De grosso modo, os sapos são mais gordos, com patas mais curtas, que se deslocam lentamente, têm a pele mais rugosa e coberta de verrugas, e levam uma vida mais terrestre, enquanto as rãs são mais esguias e aquáticas.

Após sobreviveram 360 milhões de anos, um terço a metade dos anfíbios poderá estar extinta nas próximas décadas, e que provavelmente será a maior extinção em massa de espécies animais desde os dinossauros.

Os anfíbios são controladores naturais de pestes, sendo um benéfico colaborador para os agricultores bem como um activo defensor da saúde humana pois, ao caçar insectos e outros animais nocivos, está a aumentando a produtividade agrícola e a reduzir a propagação de doenças, como a malária, transmitida por mosquitos, ou a Leptospirose, bactéria transmitida ao homem pela urina de ratos que pode ser mortal.

Os anfíbios contribuem para o delicado equilíbrio da natureza, desempenhando um importante papel nos ecossistemas tanto como predador como presa e, como tal, o seu desaparecimento conduzirá a perdas no conforto humano e qualidade de vida, já para não falar nas funções do próprio ecossistema.

As secreções da pele dos anfíbios têm propriedades anti-sépticas e desinfectantes, que conseguem matar micróbios e vírus, oferecendo promissoras curas médicas para uma variedade de doenças, incluindo o HIV.

Os anfíbios são excelentes indicadores de qualidade ambiental. Por terem uma pele altamente permeável são particularmente sensíveis a contaminantes ambientais, que entram facilmente e de forma directa no corpo, tornando-os assim importantes sentinelas para potenciais ameaças ao Homem.

Apesar de tudo, por mais estranho que pareça, ainda continuam a ser considerados animais nojentos e diabólicos, sendo muitas vezes perseguidos e assassinados (literalmente) a sangue frio. E diz o sapo Cocas com toda razão, “Não é fácil ser verde”.

 

Um dia mudamos mentalidades… Talvez seja hoje!

 

BIBLIOGRAFIA

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