Tartaruga-comum: a mascote cabo-verdiana, uma espécie ameaçada

Filipa Serra Gaspar
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São várias as espécies de tartarugas-marinhas que ao longo do ano visitam a costa de Cabo Verde. No entanto, é a tartaruga-comum, ou Caretta caretta, que visita as praias do arquipélago todos os anos, entre Junho e Novembro, para fazer a desova no terceiro país mais importante do mundo para a nidificação da espécie.

Na Cidade Velha, na Ilha de Santiago, encontram-se diversos vendedores de rua. Senegaleses que têm a sua loja em cima de uma manta, no chão. Vendem esculturas africanas e quadros, e atrevem-se a oferecer colares e pulseiras na tentativa de angariar clientes. Duas carapaças de tartarugas fazem também parte da montra. “Estas carapaças são de tartarugas que dão à costa já mortas”, garantem.

Noutras lojas de artesanato, espalhadas por toda a ilha, vêem-se réplicas de tartaruga. Feitas de conchas, cocos, rendas, de todos os materiais. Apesar de migratória, a tartaruga já é considerada património de Cabo Verde, mas nem sempre foi assim. Desde o século XV que são feitas alusões à presença de tartarugas marinhas nas águas do arquipélago e o consumo da carne e dos ovos têm uma origem ancestral. Os cabo-verdianos de pele mais enrugada admitem já ter provado.

Dizem que na tartaruga se encontram todos os tipos de carne: “Há partes que parece vitela, outras porco, e algumas sabem a frango. Na tartaruga há de tudo”. Ao longo dos anos, formularam-se diversas receitas para curar diversos problemas, desde as dores corporais até à melhoria da performance sexual e algumas das crenças perduram até aos dias de hoje.

Fig. 1 - Carapaças de tartaruga à venda nas ruas da Cidade Velha

“Há uma cultura muito forte do consumo de tartaruga em Cabo Verde”, admite Sónia Araújo, Coordenadora da Conservação de Tartarugas na Direcção Geral do Ambiente de Cabo Verde. No entanto, os esforços estão a ser feitos na direcção oposta. O consumo de tartaruga era legal e visto com normalidade entre os habitantes das ilhas, mas com o contínuo declínio das populações, surgiu em 1987 a primeira legislação para proteger a espécie. Após diversas campanhas e adesões a convenções internacionais, em 2005 foram decretadas as leis que prevalecem até hoje. É proibida a apanha e pesca das tartarugas marinhas, bem como o seu consumo e detenção em cativeiro.

Não restam dúvidas: a tartaruga está em perigo de extinção e é uma espécie prioritária. Em 2008, entrou em vigor o primeiro plano de protecção nacional que se mantém até hoje. Ricardo Monteiro integrava a World Wide Fund for Nature (WWF), que na altura estava a actuar em Cabo Verde e participou activamente na realização do plano. Actualmente, é coordenador nacional das pequenas subvenções, parte do programa de desenvolvimento das Nações Unidas. “Em Cabo Verde existe uma cultura frenética de procura de fundos. Mas eu conheço os problemas das associações. Eu já estive do outro lado”, confessa.

As maiores ameaças

As ilhas de Boavista e Sal são as que registam maior número de tartarugas. No entanto, é também nestas ilhas que o turismo de massas tem crescido a um ritmo acelerado. A construção de resorts é uma ameaça para a espécie e preocupa todas as camadas de activistas cabo-verdianos, seja pelas luzes fortes que emitem ou pelos ruídos emitidos que podem alterar o processo normal de desova. “Agora estamos a trabalhar para mitigar os impactos, tentar colocar uma iluminação mais amiga do ambiente e das tartarugas, tanto nos hotéis como também em habitações”, afirma Sónia Araújo. “É também necessário despertar a mente das pessoas. Precisamos de mostrar que não é apenas uma legislação. A população no geral não conhece os motivos pelos quais a espécie é protegida”, esclarece. Para combater essa realidade, são diversas as campanhas que decorrem ao longo de todo o arquipélago.

Nos mercados, na rua, toda a população nega o consumo: “Comer tartarugas? Isso era dantes. Agora não, nem pensar. Em Cabo Verde não se come tartaruga”. No entanto, José Tavares, membro da associação Turtle Foundation, revela o outro lado da moeda: “Há técnicas muito sofisticadas de apanha. As pessoas conseguem camuflar tudo muito bem. Desenvolveram-se canais sofisticados para comercializar a carne. Eles têm pessoas identificadas e conseguem colocar a carne em bancos, empresas, têm clientes e conseguem inclusive fazer entrega ao domicílio. É um negócio muito bem organizado”, explica.

Fig. 2 - Comercialização de peixe no Mercado do Plateau, no centro da cidade de Praia

Quando vêm a terra fazer a desova, as tartarugas são uma presa fácil. São animais de locomoção lenta, que depois de virados ao contrário não têm escapatória. No entanto, toda a gente sabe que é proibido apanhar tartarugas, garante Sónia Araújo: “Apesar de não ser considerado crime, as pessoas tentam esconder-se ao máximo para não serem apanhadas em flagrante. Se isso acontecer é apreendido todo o material, são levados até à polícia, enfim… Ninguém quer passar por esse constrangimento”.

Assim, surge um novo problema: “Começaram a matar as tartarugas no mar. Só desembarcam com a carne disfarçada e deitam a carapaça fora. É mais discreto e menos arriscado”, declara Emanuel Charles d’Oliveira, ou Monaya, como é conhecido. “Como eu mergulho, de vez em quando, encontro carapaças de tartarugas em alto mar. No entanto, cada vez encontro menos, o que não impede que a prática continue a ocorrer noutros sítios”, confessa. Ex-activista no campo das tartarugas, esteve envolvido em trabalhos de protecção da espécie por volta de 2005, com a associação Natura 2000. Iniciou um trabalho pioneiro na protecção da espécie na Ilha de Santiago, que embora seja uma das ilhas que tem uma menor afluência do animal, é onde mais se consome, pois é onde se concentra a maioria dos cabo-verdianos.

 

Acordos de pesca

“O principal foco de ameaça a tartarugas em Cabo Verde não é a predação terrestre. Todos pensavam que sim, mas, na verdade, são os grandes palangreiros europeus que pescam nas nossas águas”, admite Tommy Melo, co-fundador da Biosfera I, uma organização não governamental com sede em Mindelo, na Ilha de S. Vicente.

“Atuns e afins” é o termo que mais controvérsia gerou em Cabo Verde no que diz respeito ao novo acordo de pescas com a União Europeia. “Penso que a opinião da maioria da população é contra o acordo de pescas. Esse acordo como está feito, não faz sentido. Não é que sejamos contra os acordos de pesca em Cabo Verde. O problema é que como está feito, só é vantajoso para a União Europeia”, confessa Patrícia Rocha, bióloga na Biosfera I.

A falta de fiscalização competente e em número proporcional às embarcações, são apontadas como os maiores problemas. “Os fiscalizadores não conseguem ver tudo” afirma Emanuel. E a questão que se coloca é: o que são afinal os afins? O método de pesca utilizado na maioria das embarcações é o longline, um método que consiste numa linha principal que pode chegar a ter 200 quilómetros, na qual a cada 25 metros está uma linha perpendicular com um anzol. “Mas como é óbvio, os outros peixes não sabem que aqueles anzóis são para o atum”, refere o ex-activista dizendo que a espécie alvo, o atum, acaba por se tornar em pesca acidental, tendo em conta o número elevado de outras espécies pescadas, como a tartaruga e o tubarão, que são trazidas pelo longline. Tommy Melo garante que quantidade de tartarugas apanhadas em alto mar é “abismal”. “Essas tartarugas se não morrem, ficam gravemente feridas e dificilmente sobrevivem”, corrobora Emanuel.

Fig. 3 - Tartaruga com um membro amputado

No entanto, são apresentadas algumas soluções: “Eles pescam a 17 metros, uma zona onde há tartaruga. Basta afundar as linhas até 40 metros. Continuam a existir atuns, mas a afluência de tartarugas é muito menor. Poderia reduzir em 90% a apanha”, afirma Tommy Melo. Já Patrícia aponta: “deviam diminuir as embarcações até termos fiscalizadores suficientes e competentes. As descargas são feitas em portos internacionais e não conseguimos saber a quantidade e as espécies que foram pescadas. São necessários dados científicos antes de nos metermos num acordo desta dimensão”, reforça. Ricardo Monteiro critica ainda: “O Estado quer que a sociedade civil participe na co-gestão mas não na co-decisão”. “Cabo Verde está a gastar milhões a tentar proteger as tartarugas, mas depois elas estão a ser mortas às centenas em alto mar”, revigora o co-fundador da Biosfera I.

Com uma perspectiva diferente, Adalberto Vieira, Secretário de Estado dos Recursos Marinhos, garante que o governo elege a protecção de tartarugas como uma prioridade. “Várias são as acções que têm vindo a ser empreendidas com o intuito de protegermos as tartarugas marinhas. É certo de que não é possível ter uma eficácia 100 por cento mas é feito um trabalho para que as infracções sejam tão diminutas quanto possível. Consideramos que os países agem de boa-fé e que não estão a depredar as nossas águas”, declara. No entanto, admite a futura renegociação e reformulação do acordo, de modo a melhorar alguns aspectos relativos à interpretação do contrato.

Emanuel Charles de Oliveira lamenta: “Por melhor ou pior que seja, esse acordo não deixa que Cabo Verde tenha muito espaço de manobra. Negociar com a Europa não e fácil. Acabam sempre por impor o seu desejo. Os nossos negociadores são pessoas formadas e bem informadas, mas não conseguem fazer melhor. Não se pode dizer que não à Europa, simplesmente isso”.

Ao olhar para trás Ricardo Monteiro, admite que o plano de conservação de tartarugas marinhas, realizado em 2008, está cheio de lacunas e de pequenos detalhes que deviam ser alterados: “Está na hora de rever o plano”, afirma.

A desova

Em 2013, o número de ninhos de tartarugas marinhas em Cabo Verde regrediu. Na ilha de Santa Luzia, a Biosfera I registou entre Junho a Outubro, 509 ninhos de tartaruga Caretta caretta, menos 1097 do que em 2012, ano em que foi atingido um recorde histórico. No entanto, os resultados são encarados com naturalidade: “Ninguém estava à espera que houvesse um boom na actividade de nidificação em 2012, mas é uma flutuação natural que acontece com as tartarugas, mas depois os números voltam a estabilizar”, explica Patrícia Rocha, bióloga na associação.

Fig. 4  - Tartaruga no momento da desova e Fig. 5 - Ninho de tartaruga

 

“Não pensávamos que 2013 atingisse estes números devido à sazonalidade das tartarugas. As que vieram o ano passado já não vêm este ano”, esclarece Sónia Araújo, explicando que as tartarugas nidificam, regra geral, de dois em dois anos, e que são necessários 10 para perceber realmente como a curva de nidificação varia no arquipélago.

A desova ocorre geralmente durante a noite e cerca de 50 dias depois ocorre a eclosão dos ovos. A estratégia é colocar o maior número de tartarugas no mar porque “ali a predação é enorme e nós não podemos monitorizar essa fase ainda”, afirma Patrícia Rocha. “Quantas mais forem para o mar, maior é a probabilidade de uma delas chegar à idade adulta”, esclarece.

Fig. 6 - Tartaruga recém-eclodida e Fig. 7 - Juvenis de tartaruga a caminho do mar

 

Dos milhares de tartarugas que todos os anos se arriscam no Oceano Atlântico para começar uma nova jornada, apenas algumas conseguem fugir dos predadores e sobreviver até à idade adulta. As que lá chegam, irão voltar às origens para fazer o seu ninho, porque mesmo migratórias, a garantia é que as tartarugas voltam sempre à praia onde nasceram para fazer a desova.

 

 

Esta reportagem só foi possível graças ao programa de formação jornalística Beyond Your World.

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