Água, um recurso cada vez mais cobiçado

Maria Carlos Reis
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Por ser essencial e existirem reservas limitadas, a água é cada vez mais estratégica. Discute-se o seu uso racional, a sua temida e aparentemente inevitável escassez e a degradação das suas reservas, pois dela depende a qualidade de vida no planeta.

Numa época em que a seca em países como a Somália, a Etiópia ou o Afeganistão está frequentemente nas páginas dos jornais, tende-se a esquecer que a escassez de água é um fenómeno bem mais sério e que abrange todos os continentes. À medida que a procura suplanta a oferta, ou melhor, a disponibilidade, as reservas de água são debilitadas a níveis sem precedentes, em todo o mundo. Dezenas de países enfrentam actualmente este problema, sem que ele tenha sido suficientemente materializado para que a opinião pública esteja consciente para as questões que vai ter de enfrentar num futuro não muito distante.

É sabido que de toda a água que existe na Terra, somente 3% é água doce. Destes, 2,3% encontram-se nas calotes polares e apenas 0,7% se distribui por lagos, rios, lençóis subterrâneos e atmosfera. É apenas esta a quantidade directamente disponível para o Homem. Nos últimos 50 anos, a população mundial conseguiu reduzir as reservas globais de água em cerca de 62,7%. Na América do Sul essa redução chega a 73% e no continente africano a 75%. Esta situação só foi possível com o desenvolvimento de bombas poderosas que permitiram extrair água dos aquíferos com maior rapidez do que a sua recarga pela chuva. Os efeitos da extracção excessiva podem ser já observados nas secas cada vez mais frequentes e prolongadas, na erosão dos solos e na desertificação dos ecossistemas, que assolam diversos países.

Vivemos num mundo em que a disponibilidade de água se torna um desafio cada vez maior. Os dados da ONU mostram que o consumo mundial, que rondava os 2 mil metros cúbicos por pessoa por ano em 1960, chegou aos 4,3 mil metros cúbicos nos anos 90 e continua em crescimento acelerado. Para além de um aumento do consumo individual, em cada ano mais de 80 milhões de pessoas reclamam o seu direito aos recursos hídricos da Terra. Para tornar a situação mais preocupante sabe-se que, dos 3 000 milhões de habitantes que devem ser adicionados à população mundial nos próximos 50 anos, a sua quase totalidade nascerá em países que estão já a sofrer de escassez de água.


Em 2050, a população da Índia deverá crescer para mais 510 milhões de pessoas; a da China, para mais 211 milhões; o Paquistão deverá ter quase mais 200 milhões de pessoas; o Egipto, o Irão e o México estão destinados a aumentar a sua população em mais de metade da actual. Nestes e noutros países carentes de água, o crescimento populacional está a condenar milhões de pessoas à indigência hidrológica, uma forma de pobreza à qual é muito difícil escapar.


Já com a população actual de 6 000 milhões de pessoas, o mundo tem um imenso défice hídrico. Diversos países como a China, Índia, Arábia Saudita e Estados Unidos são responsáveis por uma sobreexploração anual dos aquíferos, calculada em 160 000 milhões de metros cúbicos. Tomando como base empírica a relação que indica que a produção de 1 tonelada de grãos necessita de 1000 metros cúbicos de água, esses 160 000 milhões de metros cúbicos sobreexplorados equivalem a 160 milhões de toneladas de grãos (metade da colheita dos Estados Unidos). Considerando a média mundial de consumo de grãos de 330 kg por pessoa por ano, esta quantidade alimenta 480 milhões de pessoas. Noutras palavras, 480 milhões dos 6 000 milhões de pessoas do mundo estão a ser alimentadas com grãos produzidos a partir do uso insustentável da água.

Cerca de 70% da água consumida mundialmente, incluindo a desviada dos rios e a bombeada do subsolo, é utilizada para irrigação. Aproximadamente 20% vai para a indústria e 10% para o consumo doméstico. Na competição cada vez mais intensa pela água entre estes sectores, a agricultura sai quase sempre a perder. Os 1000 metros cúbicos de água utilizados para produzir 1 tonelada de grãos podem ser utilizados para incrementar facilmente a produção industrial, sendo os lucros desta actividade cerca de 50 vezes superiores aos da primeira. Esta relação ajuda a explicar por que no Oeste Ameriano a venda dos direitos da água de irrigação para os centros urbanos pelos fazendeiros é uma ocorrência quase diária.


Além do crescimento populacional, a urbanização e a industrialização também ampliam as necesidades de água. À medida que a população rural, tradicionalmente dependente do poço da aldeia, se muda para prédios residenciais urbanos com água canalizada, o consumo doméstico pode facilmente triplicar.


À medida que as pessoas utilizam mais carne, ovos e laticínios na sua alimentação, passam a consumir indirectamente mais grãos. Uma dieta num país desenvolvido, rica em produtos pecuários, requer 800 kg de grãos por pessoa por ano, enquanto as dietas em países em desenvolvimento, tendo por base o amido, como o arroz, caracteristicamente necessitam apenas de 200 kg. O consumo quatro vezes superior de grãos significa um igual crescimento no consumo de água.


À medida que aumentam as necessidades de água pelas cidades e indústrias, elas são supridas pelo desvio de água da irrigação. A perda de capacidade de produção de alimentos é, então, compensada pela importação de grãos, um mercado internacional em expansão, pincipalmente na África do Norte e Médio Oriente. É a forma mais eficiente de comprar água para estes países, que enfrentam, em simultâneo, um crescimento populacional acelerado e a pressão, até ao limite, dos mananciais de recursos naturais.

Se os governos dos países carecentes de água não adoptarem medidas urgentes para estabilizar a população e elevar a eficiência hídrica, a escassez de água em pouco tempo será transformada em escassez de alimentos. Existe, ainda, o risco da necessidade de importação de grãos suplantar a oferta exportável dos países com excedentes, como os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália, e dos países de baixos rendimentos não terem condições financeiras para importar os grãos de que necessitam, condenando milhões de habitantes à sede e à fome.


Não é por acaso que o Banco Mundial alertou recentemente para os motivos da guerra nestas regiões. É que, apesar de durante este século o petróleo ter estado no cerne das contendas, no futuro elas deverão envolver a disputa pela água. Existem já alguns exemplos: uma das razões da longa animosidade entre Israel e a Síria pelas colinas de Golan são os depósitos de água da região. Mas considerando o cariz particular deste tipo de disputas, a competição pelo precioso líquido deverá ocorrer através dos mercados mundiais de grãos. Os países que poderão ganhar esta competição serão aqueles com maior poder financeiro, não militar.


Contudo, enquanto se fazem prognósticos e se colocam possíveis cenários, o défice hídrico cresce anualmente, tornando-se cada vez mais difícil de administrar. Se houvesse a decisão unânime de estabilizar todos os lençóis freáticos, bombeando menos água, a colheita mundial de grãos cairia em cerca de 8% e os preços disparariam. Mas se o défice continuar a alargar-se, o ajuste a ser feito será cada vez mais inatingível.


Embora existam ainda oportunidades para o desenvolvimento de novos recursos hídricos, a restauração do equilíbrio entre o consumo de água e o abastecimento sustentável dependerá, fundamentalmente, de iniciativas no lado da demanda, como a estabilização populacional, a elevação da produtividade hídrica e a implementação de medidas de minimização da poluição da água, responsável igualmente pela diminuição das reservas de água potável.


Os governos não podem mais dissociar a política populacional do abastecimento de água. Da mesma forma que o mundo se empenhou no aumento da produtividade da terra há meio século atrás, quando as fronteiras agrícolas desapareceram, agora também se deve empenhar no aumento da produtividade hídrica. O principal caminho no combate à escassez consiste na economia das reservas já existentes, através de uma nova política do uso. O grau de dificuldade desta mudança reside em dois factos: a água tem sido tratada como um recurso inesgotável e a reforma irá movimentar importantes interesses económicos. Devido a estes factores (culturais, religiosos e económicos), pensa-se que a política de uso da água deva variar de país para país e ter como elementos-chave o direito do uso da água, a revisão do preço dos serviços e da distribuição dos subsídios e investimentos, o incentivo à protecção ambiental e a cooperação internacional. A mudança para tecnologias, lavouras e formas de proteína animal mais eficientes em termos de economia de água proporcionam um imenso potencial para a elevação da produtividade hídrica. Estas mudanças serão mais rápidas se o preço da água for mais representativo do seu real valor.

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