Os fungos que descobriram a agricultura

Maria Carlos Reis
Imprimir
Texto A A A

Os seres vivos formam por vezes parcerias notáveis. Os líquenes, resultado de associações íntimas entre algas e fungos, são extraordinários organismos pioneiros, verdadeiros representantes da vida nos meios mais inóspitos.

Nos mares de há cerca de 3 500 milhões de anos surgiram as primeiras formas de vida, organismos muito simples e unicelulares. Dois mil anos mais tarde, flutuavam nas águas as primeiras algas microscópicas autotróficas (capazes de utilizar directamente a luz solar), algumas das quais, há cerca de 400 milhões de anos, conseguiram alastrar para a terra húmida, sobrevivendo sob a forma de uma fina cobertura verde no solo. Foi, então, que encontraram fungos, semelhantes a fibras, que nessa época também iniciavam a colonização da Terra. 
 
Onde vivem plantas, morrem plantas, e os fungos existiam para consumir os restos. Sem clorofila não podiam realizar a fotossíntese e sintetizar a partir da luz solar as substâncias orgânicas de que necessitavam. No entanto, e tal como hoje, eram capazes de obtê-las, segregando ácidos que dissolviam as substâncias minerais das rochas e dos solos. Por isso, algas e fungos completavam-se. Os fungos podiam absorver amidos e açúcares das algas e estas podiam extrair substâncias minerais dissolvidas na água que retiravam aos fungos, para sintetizarem os compostos orgânicos. Estabeleceu-se, assim, uma parceria, e os fungos encerraram as algas nos seus tecidos, num abraço muito íntimo, que sobreviveu até aos nossos dias, nas formas de vida que conhecemos como líquenes. Eles constituem a mais próxima e a mais íntima das ligações entre plantas e fungos no planeta e, embora sejam formados por dois organismos, cada par é encarado como uma entidade única.

 

 

Este trabalho conjunto tem sido extremamente bem sucedido, dotando os líquenes de capacidades que lhes permitem sobreviver a condições extremas de calor, frio e seca. É por este motivo que os encontramos desde os trópicos, até às regiões polares, em mais de 15000 formas distintas, por vezes colonizando habitats que não seriam colonizáveis pelas algas e fungos independentemente. Por exemplo, podemos encontrar líquenes nos Himalaias, a altitudes de 5490 m; nas calotes glaciares da Antárctida, onde o frio é tão intenso que o crescimento só é possível alguns dias por ano; em correntes arrefecidas de lava; nas superfícies rochosas e nas areias dos desertos. Alguns líquenes no Árctico e no Antárctico crescem literalmente dentro de rochas, ficando apenas as estruturas reprodutoras fora delas. São, ainda, capazes de "encerrar a actividade", em termos metabólicos, durante períodos de condições desfavoráveis, para "reviverem" se essas condições se alterarem. É o que acontece quando há água disponível, pois mesmo depois de muitos anos de seca, os líquenes conseguem voltar à actividade, por absorção rápida de água, assim que esta surge. 

Mas para além de ambientes extremos, os líquenes crescem em praticamente todas as superfícies. Com quantidades apropriadas de luz e humidade, ar puro, e na ausência de competição, eles podem colonizar qualquer superfície não perturbada - troncos e folhas de árvores, madeira morta, metal oxidado, esqueletos de animais e até vidro. Na tundra árctica, os líquenes crescem de uma forma particularmente luxuriante, formando arbustos com 0,5 m de altura, providenciando uma fonte de alimento de Inverno, vital para a sobrevivência de várias espécies de grandes herbívoros, como as renas.


 Contudo, e apesar da grande diversidade de formas, desde os líquenes incrustantes que formam um fino revestimento nas rochas, até outros que desenvolvem ramos minúsculos e crescem em moitas densas, a sua estrutura básica é semelhante, variando apenas no grau de organização estrutural.

No extremo encontram-se organismos muito simples, resultantes de associações praticamente casuais, com modificações estruturais muito ténues. Os líquenes mais conspícuos possuem uma estrutura bem definida, muitas vezes com zonações distintas entre parceiros. Normalmente, as células fotossintéticas são encontradas numa banda definida, onde estão intimamente ligadas com as hifas dos fungos, para a troca de nutrientes. Estas células pertencem, na maior parte dos líquenes, a algas verdes, da Divisão Chlorophyta. No entanto, em 10% dos casos, estes parceiros são algas azuis ou cianobactérias, da Divisão Cyanophyta. Existe, ainda, uma pequena percentagem de líquenes que contém os dois tipos de algas. O facto de poderem ter como parceiro fotossintético mais do que um tipo de alga, mostra que esta associação deve ter surgido de forma independente, em várias ocasiões, no decurso da história da vida.


 
Investigações recentes vêm mostrar que a relação entre algas e fungos é muito mais complexa do que pode parecer à primeira vista. Como não existem relações perfeitas, existem evidências de que as algas, apesar de receberem água e sais minerais de tempos a tempos, são praticamente exploradas, uma vez que os fungos levam mais de 50% do alimento por elas fabricado. Neste sentido, esta relação assemelha-se mais a uma relação de parasitismo do que de simbiose, em que os fungos parecem "cultivar" os seus parceiros, impondo-lhes a produção de alimento através da fotossíntese. É por este motivo que a alga de uma parceria é capaz de ter existência própria e cresce mais rapidamente se tal acontecer, o que não ocorre com o fungo. Desta forma, ele deverá ser considerado o dominador, que defende a vida mantendo a alga presa. Em circunstâncias realmente difíceis, o fungo pode chegar a matar e a digerir algumas células da alga, confirmando, assim, o seu domínio. 


 
Mas qualquer que seja o tipo de relação, o que é facto é que, em parceria, alga e fungo desempenham um papel inestimável ao mundo vivo. Estabelecem-se em alguns dos mais hostis ambientes do planeta, onde mais nada consegue alimentar-se e, quando morrem, o pó a que são reduzidos ainda pode fornecer o alimento necessário ao estabelecimento de um ser vivo autotrófico. Em termos ambientais são pioneiros intrépidos, auxiliando no processo de formação dos solos e da sua estabilizacão contra a erosão da água e do vento. Quando as associações são estabelecidas com algas azuis, devido à sua capacidade de fixar e incorporar o azoto atmosférico nos compostos que produzem, estes líquenes são responsáveis por um enriquecimento do solo em nutrientes azotados, o que é extremamente importante em regiões desérticas. 
 
Como adaptação à vida em habitats marginais, os líquenes produzem um arsenal de mais de 500 compostos químicos únicos, que servem para controlar a exposição à luz, repelir herbívoros, matar micróbios atacantes e desencorajar a competição com plantas. Entre estes compostos destacam-se pigmentos que têm sido empregues, desde a Antiguidade, na indústria têxtil, substâncias com propriedades antibióticas, utilizadas na produção de fármacos e nas medicinas alternativas, e outras aplicadas na perfumaria. Até os compostos venenosos produzidos são aproveitados por determinadas tribos de índios, que os colocam nas pontas das setas que utilizam para caçar. 


 
Existem, ainda, muitos aspectos referentes ao papel dos líquenes nos ecossistemas que devem ser salientados. Apesar de extremamente abundantes, eles são muito vulneráveis a alterações ambientais e, por isso, não é surpreendente que os habitats com maior diversidade de formas sejam os vestígios de florestas ancestrais e de outros ecossistemas não perturbados. Esta dedução parece tão clara, que os cientistas utilizam os líquenes como indicadores da qualidade ambiental, para os auxiliarem na identificação de áreas merecedoras de estatuto de protecção. 


 
Os líquenes parecem pequenas "esponjas vivas", tomando quase tudo o que vem ao seu encontro, incluindo a poluição atmosférica. Actualmente, eles são utilizados como bioindicadores, pois através de análises químicas é possível avaliar a extensão da deterioração da qualidade do ar, já que obtêm a maior parte da humidade através do ar e não através do solo.

Em termos de relações tróficas, os líquenes desempenham um papel relevante, já que em muitos casos eles constituem a base das cadeias alimentares. Muitas espécies de invertebrados (insectos, aranhas, gastrópodes, etc.) utilizam os líquenes como abrigo e alimento. Existem mesmo insectos que os mimetizam, como é o caso das borboletas que pousam sobre troncos de árvores com líquenes, e que deste modo tentam evitar a detecção pelos predadores. As propriedades isolantes dos líquenes são igualmente aproveitadas, numa grande diversidade de ecossistemas, por muitas espécies de aves, que os utilizam na construção dos seus ninhos. 
 
No entanto, existem alguns perigos da inclusão de líquenes na alimentação, o que de forma indirecta atinge o Homem (que se alimenta de carne de cervídeos) - é que eles absorvem e acumulam radioactividade, muito mais do que as plantas vasculares, e passam-na através das cadeias alimentares. Por este motivo, após o desastre de 

Comentários

Newsletter