O Fogo na Paisagem Mediterrânea

Nuno Leitão
Imprimir
Texto A A A

Numa região onde os ecossistemas estão intimamente relacionados com o fogo, principalmente devido às características climáticas, o incremento anual da sua ocorrência é uma realidade cada vez mais evidente e que se torna preocupante.

As principais características que fazem diferir as paisagens da região Mediterrânea das do resto da Europa são o clima, a intensa intervenção humana e também o fogo, que está intimamente relacionado com as outras duas características e que é, inquestionavelmente, parte integrante dos ecossistemas mediterrâneos.


O impacto do fogo nas paisagens mediterrâneas foi durante muito tempo subestimado, principalmente devido ao facto de, ao longo de décadas, ter ocorrido combinado com interferências de origem humana como, por exemplo, o caso típico do pastoreio descontrolado que contribuiu, por si só, para a degradação das terras mediterrâneas.


A região Mediterrânea é caracterizada, em termos climáticos, por Verões secos e quentes e Invernos húmidos e medianamente frios. Nos climas Xero e Termo-mediterrâneos, a vegetação lenhosa e herbácea nativa tem a possibilidade de desenvolver cobertos contínuos que, tal como as culturas de cereal de Inverno, tipicamente exploradas na região, são muito susceptíveis ao fogo durante o período seco do ano, variável entre 4 a 8 meses. O interior e o Sul de Portugal possuem geralmente clima Termo-mediterrâneo atenuado, um clima com o período seco favorável à ocorrência do fogo a decorrer de Maio-Junho a Setembro-Outubro. O factor distintivo destas regiões, que mais permite evidenciar o risco de fogo, é o facto de o início e o fim do período seco ser caracterizado por uma onda de calor, acompanhada de uma muito baixa humidade.

Com este clima, e também por indução da ocorrência de fogos, mantém-se uma vegetação esclerófita, que é característica das paisagens mediterrâneas, quando não é ocultada por rotações agrícolas e de exploração de gado. Esta vegetação está muito bem adaptada a estas condições bioclimáticas, principalmente pelas adaptações, a nível fisiológico e morfológico, às condições de secura, mas também à contínua ocorrência de fogo.


A vegetação nativa da região Mediterrânea apresenta-se hoje em diversas fases de degradação ou regeneração da antiga floresta que terá coberto as terras férteis da Bacia do Mediterrâneo, antes de ter começado a ser cultivada, ao longo de milhares de anos, subsistindo apenas alguns retalhos de florestas clímax, nalguns locais remotos. Os matos baixos ou tomilhares são a fase mais degradada da floresta mediterrânea na Península Ibérica, mas que não deixa de representar uma vegetação típica do bioclima susceptível ao fogo da região.


Muitas das espécies vegetais aqui presentes são estimuladas pelo fogo, ou seja, por factores abióticos como o calor e o fumo, que promovem fenómenos como a dispersão, a germinação, a floração, entre outros. Claro que muitas espécies, numa situação de sucessão ecológica após um fogo, devido ao seu oportunismo, ocupam a área no aproveitamento da nova disponibilidade de luz e espaço, mas tal não deve ser considerado uma adaptação directa ao fogo, já que as verdadeiras adaptações verificam-se em espécies que possuem mecanismos funcionais que lhes permitem subsistir após a sua ocorrência. 


 Um caso típico é o Carrasco, Quercus coccifera, que existe geralmente no estado arbustivo e que rebenta vigorosamente, através dos seus rizomas, após um fogo, e continua a fazê-lo após a ocorrência de vários fogos, exceptuando-se casos onde ocorra a degradação dos solos. Outro exemplo é a Azinheira, Quercus ilex ou Quercus rotundifolia, que possui uma grande capacidade para rebentar das toiças ou de rebentos basais. Mas o caso mais interessante é o do Sobreiro, Quercus suber, cujos troncos, protegidos pelo tecido vegetal mais isolador contra o calor do fogo, a cortiça, conseguem rebentar e regenerar rapidamente após este terminar, algo que só é equiparado aos eucaliptos australianos.

Outras espécies, não possuindo a capacidade de rebentar a partir das suas estruturas lenhosas, podem demorar mais tempo a recuperar, tornando-se mais dependentes do intervalo entre fogos. Nestas, as adaptações surgem, por exemplo, pela diminuição da idade de maturação para produção de sementes, com a produção de sementes de longa durabilidade e com mecanismos de resistência ao fogo, de forma a rapidamente colonizarem um local após a sua ocorrência. As sementes de algumas espécies podem passar por um estado de dormência, para serem estimuladas à germinação por factores relacionados com a ocorrência do fogo, como é o caso de espécies da família das Cistaceae ou das Papilonaceae. Outras espécies retêm as sementes até que ocorra um fogo, que permita a dispersão destas, como é o caso do Pinheiro de Alepo Pinus halepensis. 
 
Na Bacia do Mediterrâneo não existem espécies que dependam totalmente do fogo para poderem completar os seus ciclos de vida, mas esta situação ocorre noutras regiões com o mesmo tipo de clima, como na Austrália ou na África do Sul.


A paisagem Mediterrânea tem sofrido um impacto humano progressivo, ao longo de milhares de anos, tendo já passado por várias fases de uso do solo. Este processo de transformação da paisagem conduziu, em muitos locais, ao estabelecimento de novos equilíbrios entre as árvores, arbustos e vegetação herbácea, criando a atractiva diversidade biológica da região, onde o fogo foi remetido para um papel secundário e relativamente controlado. Os impactos mais recentes têm levado à degradação, não só do coberto vegetal original, mas também de parâmetros como o regime hídrico, o solo e o microclima superficial, situações que poderiam resultar da ocorrência de fogos, mas que se devem às actividades humanas e que também têm ocultado o papel do fogo.


Apesar da quase omissão do seu papel ao longo dos últimos séculos, não deixa de ser verdade que a vegetação da região é o resultado de repetidos fogos, primeiro de causas naturais, anteriores à significativa intervenção do Homem, seguindo-se o uso do fogo pelo homem primitivo para abrir as florestas na tentativa de melhorar as condições para a caça, ao que se seguiu a utilização do fogo para promover terras agrícolas e de pastoreio.


Hoje em dia, em cada ano, o fogo actua em mais de 200 000 ha na bacia do Mediterrâneo. No entanto, muitos locais continuam a ser poupados deste factor abiótico, com a manutenção de práticas centenárias, nomeadamente o pastoreio, que recorre ao fogo no Inverno para rejuvenescimento das pastagens e onde o próprio gado é responsável pelo controlo da massa de combustível. Contrariamente a esta situação, o abandono agrícola que se tem verificado e a promoção de zonas de protecção, onde as práticas tradicionais são abandonadas, levou à recuperação dos matos e florestas típicas com acumulação de combustível seco e, consequentemente, à reposição das condições naturais de susceptibilidade ao fogo. Um instrumento que permite combater esta reconversão é o fogo controlado, usado vulgarmente na Califórnia (que apresenta o mesmo tipo de clima e vegetação) e que em certa medida foi utilizado tradicionalmente na Bacia do Mediterrâneo, por pastores e agricultores.

De facto, o abandono das terras e das práticas tradicionais verificado, sobretudo, na Europa Mediterrânea tem contribuído para um aumento progressivo da ocorrência de fogos, tal como se verificou com o desenrolar da segunda metade do século passado. Desde os anos 60, altura em que os fogos anuais consumiam cerca de 50 000 ha de vegetação mediterrânea, que estes mesmos fenómenos passaram a consumir anualmente os já referidos 200 000 ha.


Este aumento tem uma conotação mais grave quando se leva em consideração que os esforços de combate e prevenção ao fogo são muito superiores aos que antes se adoptavam.


Por outro lado, esta situação de incremento verifica-se também devido aos agora frequentes fogos florestais, em áreas ocupadas pela expansão das plantações do pinheiro-bravo (caso de Portugal e Espanha), em paralelo com uma progressiva diminuição do interesse pela lenha dos pinhais, e foi acompanhada de um aumento da pressão demográfica, o que constitui um factor extremamente significativo, já que a maioria dos incêndios deve-se a causas humanas não intencionais, estando muito correlacionadas com os locais de maior densidade populacional. Também não serão de descurar as alterações climáticas que se têm evidenciado nas últimas décadas, traduzidas em aumento das temperaturas médias e diminuição das médias de precipitação. 

Seja qual for o conjunto de razões que levaram a este incremento, a verdade é que na Europa Mediterrânea a tendência é para o aumento do número de fogos e aumento de área ardida em cada ano, tendência esta que não se verifica nos locais onde são mantidas as actividades tradicionais de uso do solo.

 

 

Comentários

Newsletter