História do Montado – do fim da Idade Média ao início da Época Moderna

Ana Margarida Pinto da Fonseca
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Poucos estudos existem sobre a história do montado, como surgiu e evoluiu ao longo do tempo. Resultado de uma tese de mestrado sobre o tema, este é o primeiro de dois artigos que nos guiam pela história do montado desde a Idade Média até hoje.

 

Muito provavelmente, todos os que se interessam pelo Montado terão verificado já a carência de estudos referentes à história mais remota deste sistema.


Diversos autores abordaram o tema, como Vieira da Natividade, Balabanian, Adalgisa Carvalho, Castro Caldas, Themudo Barata, Cabo Alonso, Albert Silbert, Teresa Pinto-Correia, José Manual Mascarenhas, entre outros.


Contudo, a complexidade deste sistema deixa-nos ainda muitas questões em aberto, não estando esclarecidos todos os aspectos do seu surgimento e evolução em períodos mais antigos. 

As principais questões que se colocam relativamente a este tema são:

1 – Quando surgiu o Montado?

2 – Sob que condições?

3 – Qual a utilização da floresta mediterrânica antes da intensificação da produção agrícola e florestal?

4 – A que necessidades a sua exploração deu resposta, de que forma e com que adequação?

5 – Como alterou o Montado as praticas de vida da comunidade humana?

6 – Quais destes usos se revelaram sustentáveis a longo termo?

7 – Que lições se podem tirar para a gestão futura deste sistema? 

O estudo da história da paisagem apela a uma acentuada interdisciplinaridade, na medida em que as fontes utilizadas são de natureza histórica, mas analisadas sob o ponto de vista ecológico. Por outro lado, trata-se de um sistema semi-natural cuja função ecológica é insubstituível mas do qual o Homem faz parte integrante. Trata-se, na verdade, de uma área ainda pouco desenvolvida no nosso país, ao contrário do que acontece nas nossas vizinhas Espanha e França, já que obriga o investigador a sair da sua área tradicional de conhecimento e a enveredar por domínios que lhe são, na sua maioria, estranhos.

Para responder às questões colocadas inicialmente, recorreu-se à consulta de fontes manuscritas, de entre as quais se destacam as “Memórias Paroquiais”, de 1758, o “Tombo das Capelas de Évora”, de 1537, posturas municipais que foram sendo emitidas do século XV ao século XVIII, entre outros documentos.

De entre as fontes impressas são de destacar os relatos de viajantes estrangeiros pelo nosso País, como é o caso das anotações produzidas pelo naturalista alemão Heinrich Link que, em finais do século XVIII, efectuou várias incursões de carácter botânico no Sul de Portugal. Uma série de documentos de carácter normativo foram reunidos por Baeta Neves, desde o século XIII, na sua “História Florestal, Aquícola e Cinegética” e que se revelaram também bastante úteis. Os Forais, com as devidas cautelas de interpretação, fornecem também algumas informações relativas à paisagem. 


 O estudo da história do Montado, tal como o de qualquer outra paisagem deve, dada a abrangência do objecto e a multiplicidade de componentes envolvidos, assentar sobre diversos tipos de fontes. Foram consultadas, por isso, ainda, fontes arqueológicas, dados polínicos e representações iconográficas.


Tentemos pois responder às questões inicialmente colocadas. 
 
1 – Quando surgiu o montado?

As primeiras formas de Montado terão surgido quando o Homem começou a intervir no bosque mediterrânico, fazendo uso do fogo e, deste modo, desadensando o coberto arbóreo, limpando os matos e aproveitando a bolota e as pastagens para a alimentação do gado.

A expansão da pecuária está directamente relacionada com o crescimento populacional e as crescentes necessidades de lã, carne, carvão, cereais e madeira, bem como o progresso tecnológico.

Só nos solos mais férteis terá havido uma destruição total da floresta em favor das culturas hortícolas.


2 – Sob que condições de deu a expansão deste sistema?

A expansão do montado está altamente correlacionada com os períodos de maior pressão demográfica.

Nos períodos de baixa conjuntura, nos séculos XIV e XVII, devido a um arrefecimento climatérico e menores produções cerealíferas, fomes e doenças, a população sofreu uma regressão. O Montado ficou sujeito ao abandono, a charneca avançou, tendo havido uma maior regeneração das árvores. Esta situação foi especialmente acentuada no século XIV, com a peste negra, que dizimou cerca de 1/3 da população do País.

O século XVI representa um período em que a busca de madeira para a construção naval é significativa, conduzindo à publicação de inúmeras normas protectoras das árvores e que visavam a reflorestação com sobreiros, outros carvalhos e outras espécies arbóreas.

Na segunda metade do século XVIII, devido ao crescimento populacional, a exploração do Montado volta-se essencialmente para a pecuária (carne e lã), conduzindo a uma exploração menos intensiva do sistema. Contudo, esta população vai-se concentrar essencialmente no litoral e na zona de Lisboa, aumentando as necessidades de carvão e conduzindo a uma procura acrescida deste material.


3 – Qual a utilização da floresta mediterrânica antes da intensificação da produção agrícola e florestal?

A utilização da floresta mediterrânica desempenhava um papel essencial para as populações menos favorecidas. Estas contavam com os produtos que obtinham do bosque mediterrânico para suprir uma grande parte das suas necessidades. Obtinham um complemento para a sua limitada e pouco variada alimentação através de produtos como pequenos frutos, cogumelos, tubérculos, mel, pequenas aves e animais caçados e peixe pescado nas ribeiras. Conseguiam cera e lenha que lhes permitia ter luz e aquecimento durante as noites de Inverno, materiais como madeira para a construção de mobiliário, utensílios domésticos e ferramentas de trabalho, bem como colmo para a cobertura das suas casas. Ainda se aproveitavam destes baldios para a alimentação dos seus animais.


4 – A que necessidades a sua exploração deu resposta, de que forma e com que adequação?

O Montado permitiu responder às necessidades alimentares da comunidade humana através da criação agro-pecuária. Embora as necessidades em carne tenham sido relativamente satisfeitas, as necessidades em trigo só foram plenamente cobertas no período dos descobrimentos, quando o nosso País pôde importar este cereal do império, a baixo custo. Com esta excepção, e relativamente a este cereal, o nosso País foi sempre dependente das importações dos países vizinhos.

Outra necessidade a que o Montado respondeu de forma plena, embora com consequências frequentemente nefastas para o próprio sistema, foram as necessidades em energia, sob a forma de lenha e carvão, este último maioritariamente para Lisboa.

A produção de lã também foi sempre uma actividade muito importante associada a este sistema e que só terá sofrido uma quebra no século XVII, devido à estagnação económica. No século XVIII, com as exportações de lã para Inglaterra e o relançamento da indústria de lanifícios a nível nacional para responder às necessidades de uma população crescente, esta produção recuperou a importância que tinha anteriormente.


5 – Como alterou o Montado as práticas de vida da comunidade humana?

O sistema de Montado influenciou definitivamente a comunidade humana que o criou, originando toda uma estrutura em torno do sistema, um conjunto de profissões, normas e práticas dele indissociáveis. Estruturas como as Aduas e as Coutadas levavam ao surgimento de um conjunto de profissões associadas à fiscalização das actividades nelas realizadas, mas também de regulamentos como o “Regimento dos Verdes e Montados da Campo de Ourique” ou as posturas municipais. A utilização do montado condicionava o ciclo anual das actividades agrícolas com a extracção de cortiça a efectuar-se de Maio a Agosto e o aproveitamento da bolota de Setembro a Dezembro. Implicava também grandes deslocações dos rebanhos transumantes e respectivos pastores, tanto do centro do país como provenientes de Espanha, contribuindo para um contacto das populações alentejanas com a economia e a cultura existentes noutras regiões e facilitando o acesso a mercados exteriores.

A utilização da cortiça, para os mais diversos fins, é uma pratica corrente das populações que vivem no Montado. Estas utilizações vão desde os “cortiços” para as abelhas, abrigos para os animais chamados “cortiçadas”, rolhas, cintos de salvação, calçado, bóias, cabanas de lavradores, muros, loiça, mobiliário e objectos de artesanato.

A recolha de plantas medicinais desempenhava, na antiguidade, um recurso importante, na ausência de medicamentos, e as diversas plantas e as suas aplicações eram conhecidas. A recolha de cogumelos era também importante para a alimentação humana. 
 


 6 – Quais destes usos se revelaram sustentáveis a longo termo?

Os usos que se revelaram mais sustentáveis a longo prazo foram, como seria de esperar, aqueles que implicam uma utilização menos intensiva do sistema.

A cerealicultura intensiva provoca erosionamento dos solos, as lavras sob as copas das árvores destroem as raízes das árvores, o encabeçamento excessivo afecta a pastagem e impede a regeneração das árvores e, por último, a extracção incontrolada de carvão pode conduzir à destruição de Montados inteiros.

Por outro lado, várias produções associadas ao Montado adquiriram e mantêm, na actualidade, uma importância incontornável. São elas a extracção de cortiça, a recolha de cogumelos e a exploração pecuária. O presidente da Associação Portuguesa de Micologia defende que os valores da exportação de cogumelos correspondem a um rendimento da ordem dos 15 milhões de contos, por ano. Somos o principal exportador mundial de cortiça. A exploração pecuária, acrescida da crescente certificação dos seus produtos, tem conduzido a um peso crescente deste sector na nossa economia.

Mas também a caça, a produção de mel e cera, de carvão a partir do material resultante das podas, o turismo, são usos que se têm revelado sustentáveis quando bem geridos. 

7 – Que lições se podem tirar para a gestão futura deste sistema?

Esta questão será o objecto do próximo artigo.

 

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