Uma reflexão sobre o ordenamento do território

Nuno Quental, Escola Superior de Biotecnologia – Universidade Católica Portuguesa (09-2003)
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É que fazer uma cidade não é, obviamente, coisa simples. Sobretudo não é tão simples quanto desenhar, a régua e esquadro, traçados de vias e de lotes. Um espaço com um mínimo de urbanidade é composto por uma série de camadas, sucessivamente mais difíceis de atingir, de relações, actividades e estruturas. Por outras palavras: é relativamente fácil lotear uma quinta e de ver habitantes nos futuros edifícios; mas quanta complexidade adicional é necessária para que surjam associações, para que se possa falar de uma comunidade ou para que esses habitantes se preocupem efectivamente com o lugar onde vivem? Eu diria que atingir este nível de urbanidade é extremamente difícil, e que muito pouco do que se construiu nestes últimos vinte anos algum dia o atingirá.

Encontrar associações e pessoas preocupadas em contribuir para um desenvolvimento do território bem pensado é algo de que se não pode prescindir. Cada um tem uma visão específica de como ele se deve desenrolar, dependendo do conjunto de valores que foi formando ao longo da vida. Nenhuma dessas visões pode ser considerada a ideal: em última análise, só qualquer coisa como a sua fusão diferenciada se poderia aproximar de tal resultado. Cabe ao planeador, de forma aberta e atenta, entender cada um destes pensamentos, fundi-los e relacioná-los com os diversos critérios técnicos que estão na base de um urbanismo saudável, para assim ordenar o território preenchendo o máximo de valências possível. Mas o que faz a maioria dos municípios? Encarrega-se de ignorar esses preciosos contributos, refugiando-se numa arrogância primária de quem é o dono absoluto da verdade.

Hoje em dia não há vila que não queira ser cidade; e não há cidade que não sonhe ter mais e mais população. Mas afinal qual o sentido desta competição interconcelhia, quando o território deve ser pensado não de acordo com divisões administrativas mais ou menos arbitrárias, mas segundo padrões geográficos com alguma semelhança? É necessário pensar a uma escala superior, capaz de se sobrepor à lógica municipal que ignora o que se passa nos concelhos limítrofes e na região. Haverá por acaso algum presidente da Câmara que aceite uma limitação no seu perímetro urbano por essa ser a melhor solução em termos de ordenamento regional? Seguramente muito poucos, porque medem a sua importância pela extensão do município já urbanizado. Poucos são os que se preocupam com a qualidade e integridade do espaço; só querem ter gente, estradas, vias rápidas, novos loteamentos... Eu gostava, isso sim, de ver autarcas preocupados em ter cidades bonitas, verdes, amigáveis para as pessoas, onde os habitantes se orgulhassem de viver.

Consequência imediata de construir tudo em qualquer lado é a dispersão de pequenos aglomerados populacionais ao longo de enormes manchas do território. Esta política apresenta sérias consequências, aliás bem presentes entre nós: a quase impossibilidade de garantir bons níveis de atendimento de serviços básicos devido aos enormes custos associados; a criação de movimentos pendulares muito significativos – e, consequentemente, a necessidade de construir novas vias de comunicação; a destruição e impermeabilização de áreas crescentes de solo, que é um recurso precioso; e a dificuldade de se atingir, em qualquer dos locais urbanizados, uma população com dimensão crítica do ponto de vista de transportes públicos, serviços de saúde, equipamentos desportivos, etc. É a receita para a insustentabilidade económica, social e ambiental. Combater a dispersão urbana não é opção, é uma obrigação que não requer mais do que uma ligeira dose de bom senso.

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