Alterações da paisagem de uma Região do Minho no Período 1958-1995 e seus Impactos na Diversidade de Aves: A Importância do Fogo

Francisco Moreira, Centro de Ecologia Aplicada Prof. Baeta Neves-ISA
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A evolução da paisagem de uma zona do Minho foi avaliada para o período 1953-1995, tendo-se verificado um aumento da diversidade da paisagem que não foi, curiosamente, acompanhada de um incremento da diversidade de aves, veja porquê.

INTRODUÇÃO

Os fogos florestais têm tido um impacto crescente nas paisagens da Península Ibérica. Por este motivo, torna-se importante compreender de que forma as alterações ocorridas nas paisagens contribuíram para o aumento da frequência de fogos, tal como compreender de que forma os incêndios contribuíram eles próprios para alterações subsequentes na paisagem. E que impactos tiveram estas alterações na biodiversidade? Um projecto europeu designado “LUCIFER – Land use change interactions with fire in Mediterranean landscapes”, pretendeu aprofundar as relações entre paisagens, fogos e biodiversidade em várias áreas de estudo localizadas na região Mediterrânica (desde Portugal até à Grécia).

A região noroeste da Península ibérica possui duas características que a tornam particularmente interessante para este tipo de estudos. Em primeiro lugar, possui a mais elevada frequência de fogos florestais (número de incêndios por ano) de toda a União Europeia, apesar de a dimensão média de cada fogo ser bastante reduzida (<10 ha) . Em segundo lugar, esta região está localizada na região biogeográfica eurosiberiana, que em Portugal ocorre apenas no extremo norte do país. Deste modo, várias espécies da nossa fauna (e flora) ocorrem apenas nessa área geográfica.

As comunidades de aves são sensíveis à estrutura da paisagem, e o objectivo deste estudo foi avaliar até que ponto alterações da paisagem, o fogo, e a interacção entre estes 2 factores, poderão ter influenciado as populações de aves de uma região minhota nos últimos 40 anos. Mais especificamente, pretendeu-se (a) descrever as comunidades de aves associadas a cada um dos principais tipos de usos do solo actualmente existentes na região; (b) avaliar as implicações da ocorrência de fogos nestas comunidades; (c) estimar qual terá sido a evolução nas populações de aves nos últimos 40 anos, em função das alterações ocorridas na paisagem.

MÉTODOS

A área de estudo tem 3700 ha e localiza-se entre Ponte de Lima e Paredes de Coura, numa região montanhosa conhecida como Corno do Bico. A altitude varia entre 400 e 800m.

A caracterização paisagística foi feita com base na fotointerpretação de fotografia aérea tirada nos anos de 1958, 1968, 1983 e 1995. Deste modo, as várias áreas de ocorrência de 6 tipos principais de usos do solo foram mapeadas e incorporadas num Sistema de Informação Geográfica. As categorias de usos do solo (equivalentes a habitats) consideradas foram:

(1) áreas agrícolas –localizadas sobretudo nos vales, consistem num mosaico de parcelas muito pequenas e com uma grande diversidade de cultivos (milho, cereais, pastagens, vinhas, batatas, etc.); por vezes ocorrem algumas manchas de floresta nestas áreas. Esta categoria inclui ainda algumas pastagens de montanha.
(2) matos baixos – sobretudo constituídos por tojo e carqueja com menos de 50 cm de altura.
(3) matos altos – com altura superior a 50 cm, por vezes atingem mais de 250 cm. São constituídos por tojos e giestas.
(4) Florestas de folhosas – incluem as árvores características da região, carvalho roble, ácer, castanheiro e bétula.
(5) Florestas mistas – são uma mistura de folhosas e coníferas.
(6) Florestas de coníferas – plantações de pinheiros e pseudotsugas.

Para cada ano de estudo foi estimada a área ocupada por cada um destes usos, bem como algumas estatísticas da estrutura da paisagem.

Utilizando a fotografia aérea de 1995, foram sorteados 20 locais em cada um dos 6 tipos de usos do solo. Cada um destes locais foi visitado durante a Primavera de 1998 para caracterizar a abundância de aves. Para esse efeito, foram contabilizadas todas as aves vistas ou ouvidas durante um período de 10 minutos. Estas contagens foram efectuadas durante a manhã, quando a actividade de canto das aves está no seu máximo. Paralelamente, foram anotados vestígios de incêndios recentes (há menos de 3 anos) em cada um dos locais amostrados.


RESULTADOS E DISCUSSÃO

A análise dos resultados foi efectuada em 3 fases: análise das alterações da paisagem, análise das comunidades de aves típicas de cada tipo de habitat e análise das variações estimadas, ao longo dos 40 ano, nas diferentes espécies de aves.

Alterações na paisagem

Para efectuar as análises das alterações da paisagem, foram comparadas várias estatísticas a paisagem para os 4 períodos de estudo. Exemplos dessas estatísticas são a área total de cada uso do solo, o número total de parcelas na paisagem e um índice de diversidade de paisagem. Os resultados estão sumarizados na Tabela 1. A região estudada possui como usos do solo principais as zonas agrícolas e os matos. As principais alterações durante o período 1958-1995 foram: (a) uma diminuição das áreas agrícolas (-29%) e dos matos baixos (-48%); (b) um aumento nas áreas florestais (+147% nas florestas de coníferas, folhosas e mistas) e matos altos (+96%). Ocorreu ao longo do tempo uma progressiva fragmentação da paisagem, expressa no aumento do número total de parcelas e diminuição da dimensão média de cada parcela. Associada a estas alterações, registou-se um aumento na diversidade global da paisagem.

Tabela 1 – Alterações na paisagem estudada entre 1958 e 1995. O índice de diversidade pondera a abundância relativa de cada uso do solo. Por exemplo, uma paisagem em que 90% da sua área é zona agrícola terá uma menor diversidade que outra paisagem onde apenas 50% da área for agrícola. A densidade de orlas é o resultado do comprimento total (m) de linhas de contacto entre 2 habitats diferentes ponderado pela área da paisagem.

Comunidades de aves típicas de cada tipo de habitat

A partir dos dados referentes a todas as espécies de aves que ocorreram em cada habitat (uso do solo) foi estimada a riqueza (número total de espécies) e diversidade em cada habitat (Tabela 2). Foram contabilizadas 61 espécies de aves em toda a região. A riqueza e diversidade de espécies foram menores nos matos, intermédias nas zonas florestais e mais elevadas nas zonas agrícolas, onde foi registado o máximo de 38 espécies. Nas áreas ardidas (sobretudo constituídas por matos) o número de espécies foi bastante baixo (14), apesar de ser da mesma grandeza do valor observado nos matos não ardidos. É também de referir que dentro das áreas florestais, a diversidade aumentou ao longo do gradiente pinhais – floresta mista – folhosas.

Tabela 2 – Diversidade de aves em vários tipos de uso do solo (habitats) na área de estudo. O índice de diversidade entra em consideração não só com o número de espécies mas também com a abundância relativa de cada espécie. Por exemplo, um habitat com 5 espécies mas em que 90% dos indivíduos são de uma única espécie tem uma menor diversidade que um habitat com o mesmo número de espécies mas em que cada uma apresenta uma abundância semelhante (isto é, não há dominância clara de nenhuma das espécies). 

 Para caracterizar as comunidades de aves foram utilizadas várias técnicas de análise multivariada. Uma das mais importantes designa-se de análise de correspondências; esta técnica permite obter um gráfico onde estão representados por pontos os locais de amostragem e as diferentes espécies de aves. Dois locais muito próximos no gráfico têm uma comunidade de aves muito semelhante (por exemplo, em ambos os locais a espécie mais abundante foi o melro, a segunda mais abundante foi o tordo, a terceira mais abundante foi o chapim, etc.). Paralelamente, duas espécies localizadas próximas no gráfico apresentam as mesmas preferências de habitat (por exemplo, são ambas mais abundantes em pinhais, em segundo lugar florestas de folhosas, depois vales agrícolas, etc.). Por último, para cada espécie foi determinado o seu grau de especialização do habitat através de um índice apropriado que varia entre 1, quando a espécie é exclusiva de um único habitat (não ocorrendo em nenhum dos restantes), e 6, quando a espécie ocorre em igual abundância em todos os habitats. Desta forma, as espécies foram classificadas como especialistas ou generalistas.

Os resultados podem ser vistos na Figura 1. Ao longo do primeiro eixo (na horizontal), parece existir um gradiente nas comunidades de aves desde os matos baixos (no lado direito), passando pelos matos altos e pelas zonas florestais (no extremo esquerdo). O segundo eixo (na vertical) separa essencialmente as zonas agrícolas dos restantes habitats. Pode também verificar-se que ocorrem espécies especialistas em todos os habitats excepto os matos altos. O que significam estes resultados? Que existem espécies associadas a todos os tipos de uso do solo (mesmo os que têm baixa diversidade como os matos) e, inclusivamente, várias espécies estão especializadas num dos habitats (excepção feita aos matos altos). Por exemplo, apesar de os matos baixos terem uma muito menor diversidade de aves que as áreas agrícolas, existem 3 espécies que foram observadas quase exclusivamente neste habitat (por exemplo, a felosa do mato - código Sunda). Por outro lado, vê-se perfeitamente a importância da manutenção das áreas agrícolas, ao mesmo tempo com uma grande diversidade de aves e com várias espécies especializadas neste habitat. A ocorrência recente de fogos foi máxima nos matos baixos (onde 50% dos locais visitados tinham ardido), seguida dos matos altos (24%) e restantes habitats (0%).

 

Figura 1. Resultado da análise de correspondências. Cada ponto representa uma espécie de ave, com o respectivo código de nome. Pontos brancos representam espécies generalistas e pontos negros representam espécies especialistas. Para facilitar a leitura da figura, os pontos relativos aos locais foram retirados e foi desenhado um círculo a rodear a região do gráfico onde os pontos relativos aos vários usos do solo se localizam. Para cada uso do solo está indicada a percentagem de locais visitados com vestígios de fogos recentes.

Análise das variações estimadas para o período 1958-1995

Para estimar a variação no número de indivíduos de cada espécie de ave ao longo dos anos, a densidade medida em cada habitat foi multiplicada pela abundância do habitat nos vários anos. Por exemplo, se uma cotovia ocorreu em zonas agrícolas numa densidade de 2 casais/ 10 ha, então se seria 1000 ha de áreas agrícolas em 1958, deveriam ter ocorrido 200 casais em toda a área de estudo. Se essa área diminuiu para 500 ha em 1968, então a população de cotovias deverá ter baixado para 100 casais. A partir dos resultados observados para cada espécie, estas foram agrupadas em função de padrões de variação de abundância comuns ao longo dos 40 anos. Desta forma, foram identificados 4 grandes grupos de espécies. O primeiro grupo incluiu 14 espécies associadas a áreas agrícolas e matos baixos; estas espécies mostraram um declínio progressivo (-38%) das suas populações ao longo dos 40 anos. O segundo grupo incluía 26 espécies florestais, cuja estimativa de variação foi de um aumento de 100% na sua abundância. Nos restantes 2 grupos verificou-se uma flutuação não sistemática na abundância das espécies neles incluídas. A proporção de espécies especialistas foi muito superior no primeiro grupo, relativamente aos restantes.


 

CONCLUSÕES

O resultado final deste estudo foi que ao longo dos 40 anos considerados, a diversidade da paisagem aumentou, mas a diversidade de aves diminuiu. Porquê?

A diversidade paisagística aumentou porque vastas áreas de zonas agrícolas e matos baixos foram substituídas por matos altos e florestas, resultando numa distribuição mais equitativa entre as várias componentes da paisagem. Mas porque terá a diversidade de aves diminuído, o que parece um contra-senso? A explicação para este resultado reside no facto de uma grande diversidade de aves (e incluindo várias espécies especialistas) estar associada às zonas agrícolas (incluindo muitas exclusivas deste habitat), que sofreram uma forte redução durante o período de tempo considerado. Esta redução não foi compensada pelo aumento das populações de aves florestais, cujas populações foram crescendo devido à maior disponibilidade de habitat.

 

E QUAL É A IMPORTÂNCIA DO FOGO?

O fogo parece desempenhar um papel importante na manutenção de matos baixos, que apesar de possuírem uma diversidade de aves baixa albergam algumas espécies que só ocorrem neste habitat. Para além disso, várias espécies de aves de rapina (não consideradas neste estudo) utilizam estas zonas ardidas como locais de alimentação. Desta forma, pode considerar-se o fogo como um fenómeno que aumenta a diversidade de aves à escala da paisagem, desde que as áreas ardidas se restrinjam a zonas de matos. Obviamente que um incêndio de grandes proporções que destrua toda a área de estudo terá consequências bastante nefastas na biodiversidade. A figura 2 sumariza as principais implicações, para as várias espécies de aves, do abandono de terrenos agrícolas e fogos florestais. Como consequência do abandono dos campos agrícolas, a tendência natural será para um desenvolvimento progressivo da vegetação. Muitas espécies típicas de zonas agrícolas desaparecerão e serão substituídas por espécies típicas de matos baixos e altos. Posteriormente, a evolução da vegetação para uma situação de floresta levaria à substituição progressiva de espécies de matos por espécies florestais. Sem intervenção humana, toda a zona se transformaria em floresta num espaço de décadas. Neste contexto, o papel dos fogos florestais acaba por ser o de manter alguns mosaicos de matos baixos na paisagem, o que favorece as populações de aves. Como medidas gerais para a manutenção da diversidade paisagística e de aves na região, sugere-se: (a) a manutenção das áreas agrícolas remanescentes, por exemplo através do desenvolvimento de políticas agro-ambientais; (b) a promoção de espécies de árvores nativas, particularmente carvalhos, em detrimento de pinheiros e eucaliptos. Esta medida permitiria igualmente diminuir o risco de fogos florestais de grandes dimensões (resultados apresentados noutro artigo); (c) a promoção da utilização do fogo controlado na região. Esta técnica permite simultaneamente a criação de habitats importantes para a vida selvagem e a prevenção de fogos florestais de grandes dimensões, ao criar corta-fogos na paisagem.

Figura 2. Esquema das implicações para as comunidades de aves resultantes das alterações de uso do solo decorrentes do abandono agrícola (setas pretas) e da ocorrência de fogos florestais (setas cinzentas). Os pontos pretos indicam espécies especialistas e os pontos brancos espécies generalistas (ver Figura 1).

 

Agradecimentos

À Direcção Geral das Florestas (Engs. Rui Natário e Manuela Soares Batista) pela cedência de dados relativos à ocorrência de fogos florestais. Este trabalho foi elaborado no âmbito do projecto comunitário “LUCIFER – Land use changes interactions with fire in Mediterranean landscapes”. O presente documento resulta de um resumo do artigo: Moreira, F., Ferreira, P., Rego, F., Bunting, S. (2001) Landscape changes and breeding bird assemblages in northwestern Portugal: the role of fire. Landscape Ecology, 16: 175-187.

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