O lobo e o gado bovino e equino pastoreado em liberdade no Noroeste de Portugal – Um estudo das relações ecológicas

Helena Rio Maior, Elisabete Malveiro, Francisco Álvares e Francisco Petrucci-Fonseca
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É urgente a aplicação de medidas de conservação do lobo que atenuem o conflito Homem-Lobo. Aliado ao fomento da abundância das presas silvestres, importa reduzir a predação sobre animais domésticos. Este projecto procura soluções para este problema.

A predação do lobo (Canis lupus signatus Cabrera, 1907) sobre os animais domésticos verifica-se em quase toda a sua área de distribuição e constitui uma das principais causas do histórico conflito entre o Homem e o lobo e, consequentemente, da elevada perseguição que tem levado à regressão deste carnívoro (Mech, 1970).

Os ungulados silvestres constituem as presas básicas do lobo. No entanto, a destruição dos seus habitats e a caça descontrolada têm conduzido à redução dos efectivos populacionais dos ungulados bem como da sua área de distribuição. Por outro lado o espaço deixado vago por estas espécies foi ocupado pelos animais domésticos que o Homem foi disseminando à medida que a sua utilização aumentava. Assim, os animais domésticos passaram a constituir a principal possibilidade de alimento para o lobo.

 


Figura 1 - Bovino da raça Cachena


Na região Noroeste de Portugal, que inclui o Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG), os grandes ruminantes domésticos, ou seja, os equinos e os bovinos, constituem mais de 50% da dieta do lobo (Álvares e Petrucci-Fonseca, 2000; Costa, 2000).

Os bovinos pastoreados nesta região são, na sua maioria, pertencentes a duas raças autóctones: a raça Cachena (Figura 1) e a raça Barrosã (Figura 2). No que se refere aos equinos, estão representados pelos pequenos e primitivos cavalos da raça Garrana, originária da região luso-galega (Figura 3).

 


Figura 2 - Bovinos da raça Barrosã



O principal regime de pastoreio utilizado para o gado bovino é o extensivo tradicional, em que os animais pastoreiam livremente cerca de 10 meses por ano, sendo guardados para pernoitar nas cortes, durante os meses mais frios de Inverno. Os animais são geralmente conduzidos para as zonas serranas mais altas, no início da Primavera, onde permanecem sem serem pastoreados até ao final do Verão. No resto do ano, o gado anda em pastoreio próximo das povoações. As manadas de bovinos apresentam tamanho e composição variável, sendo geralmente constituídas por um macho, várias fêmeas e as respectivas crias.

Os equinos são mantidos todo o ano em pastoreio livre nas zonas mais serranas, deslocando-se em manadas de número variável, constituídas por um garanhão adulto, várias fêmeas e os juvenis. Ocorrem também manadas formadas por machos juvenis.

 


Figura 3 - Equino da raça Garrano



Os prejuízos nos equinos e bovinos atribuídos ao lobo (Figura 4) nesta região são elevados, o que faz com que seja o PNPG, embora possuindo apenas cerca de 15% da população lupina nacional, a área protegida que paga a maior parte dos montantes das indemnizações referentes aos danos nos animais atribuídos ao lobo. De acordo com a Lei 90/88, Decreto-Lei 139/90, estes prejuízos são indemnizados pelo Estado. No entanto, não está prevista a indemnização das perdas associadas aos animais desaparecidos e às sanções aplicáveis à diminuição dos efectivos previstas no sistema de ajudas agro-ambientais que integram o Plano de Desenvolvimento Rural – RURIS. Também os atrasos no pagamento das indemnizações aos pastores, que actualmente ascendem a períodos superiores a um ano, são frequentes.



A presença do lobo possui, portanto, um impacto negativo na economia das populações rurais que com ele coexistem, o que se revela de particular importância uma vez que a pecuária constitui a principal actividade económica das comunidades rurais de montanha. Este facto motiva uma elevada perseguição ilegal a este predador com recurso, principalmente, ao uso das armas de fogo e a venenos (Álvares e Petrucci-Fonseca, 2000).


Figura 4 - Cria de equino ferida nos quartos traseiros devido ao ataque de um lobo


Desta forma, torna-se urgente a aplicação de medidas de conservação do lobo que atenuem o conflito entre o Homem e o Lobo. Aliado ao fomento da abundância e diversidade das presas silvestres, à recuperação dos métodos tradicionais de pastoreio de pequenos ruminantes (e.g. cães de gado) e a uma revisão e agilização do actual sistema de indemnizações, importa actuar ao nível da prevenção da predação sobre este tipo de animais domésticos pastoreados em total liberdade, promovendo os seus comportamentos anti-predatórios e actuando ao nível do maneio das manadas de gado.


O PROJECTO

O projecto denominado O lobo e o gado extensivo no Noroeste de Portugal - Um estudo das relações ecológicas, desenvolvido pelo Centro de Biologia Ambiental (Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa) e o Grupo Lobo, com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, tem como principal objectivo o delineamento de bases científicas que contribuam para a minimização da predação do lobo nos animais domésticos. O estudo da dinâmica ecológica e comportamental da relação predador-presa é uma ferramenta essencial na tarefa de desenvolver uma tolerância do Homem face ao lobo. O presente estudo abarca a área de distribuição do lobo nos Distritos de Viana do Castelo, Distrito de Braga (excepto o Concelho de Celorico de Basto) e Concelho de Montalegre (Figura 5). Em particular para a análise das relações eco-etológica entre o lobo e o gado extensivo, foi considerada uma área de estudo mais restrita, situada na região Oeste do PNPG, constituída, essencialmente, pela Serra do Soajo. Esta área foi seleccionada tendo em conta o elevado efectivo pecuário existente e os diferentes níveis de intensidade de presença de lobo.


Figura 5 - Área de estudo



MONITORIZAÇÃO DA POPULAÇÃO LUPINA

A monitorização da distribuição e demografia da população lupina na área de estudo, que tem vindo a ser desenvolvida ao longo dos últimos dez anos, faculta o conhecimento base para um estudo desta natureza. Para a realização dos censos são utilizados: métodos directos - esperas para observação directa de indivíduos e indução de uivos com o objectivo de confirmar alcateias e existência de reprodução; e métodos indirectos - transectos para procura e quantificação de indícios de presença (e.g. pegadas, dejectos) através de I.Q.A. (Índices Quilométricos de Abundância) e realização de inquéritos aos habitantes das populações locais (Figura 6).

A área de estudo é ocupada por dezoito alcateias distribuídas por três núcleos populacionais definidos em função do grau de estabilidade dos grupos familiares: o núcleo Arga-Paredes de Coura, caracterizado por uma grande instabilidade e fragilidade, uma vez que se encontra sujeito a vários factores de fragmentação do habitat e a uma elevada perseguição directa por parte do Homem; o núcleo Barroso-Cabeceiras de Basto, caracterizado por uma baixa densidade e por uma certa instabilidade; e o núcleo Peneda-Gerês, que é um núcleo estável, e constitui uma fonte de animais dispersantes, sendo uma das melhores áreas em Portugal para a ocorrência de lobo, como atestam as altas densidades deste predador que aqui se encontram (2,0-5,0 lobos/100km2), as quais se encontram entre as mais elevadas a nível europeu.



Introdução de técnicas de genética molecular

Paralelamente, está a ser desenvolvida uma linha de investigação, com o objectivo de monitorizar e estimar o tamanho das populações lupinas através de técnicas de genética molecular, como complemento aos métodos tradicionalmente utilizados na monitorização desta espécie. A primeira fase deste trabalho consistiu na optimização das condições de extracção de DNA a partir de dejectos de lobo recolhidos no território de várias alcateias da área de estudo. Os dejectos são abundantes, a sua recolha é totalmente não invasiva, e é possível obter, a partir das células epiteliais da mucosa do intestino que se encontram nos dejectos, uma quantidade de DNA suficiente que permite a realização de estudos de genética de populações. O DNA obtido é analisado com o objectivo de estabelecer perfis genéticos, que permitirão a identificação de relações entre indivíduos dentro de um grupo ou de uma população, e até mesmo a identificação genética ao nível individual.

 


Figura 6 - Exemplos de métodos directos e indirectos utilizados na monitorização da população lupina (A- Esperas; B- Indução de uivos; C,D,E- Vestígios de lobo)


RELAÇÃO PREDADOR-PRESA

A predação constitui uma das mais importantes forças selectivas para as características morfológicas e etológicas dos animais, que adaptam o seu comportamento de forma a avaliar e reduzir o risco de predação (Lima, 1995). Esta adaptação manifesta-se através de alterações no comportamento social dos grupos e na selecção de habitat. Assim, é fundamental avaliar os efeitos da presença do lobo no comportamento do gado, em particular evidenciar as diferenças na selecção do habitat e na organização social das manadas. Para tal, foram seleccionadas duas alcateias localizadas na Serra do Soajo, e cujos territórios são percorridos mensalmente durante o dia e a noite de forma a recolher informação relativa à composição, tamanho e coesão das manadas de equinos e bovinos observadas. A amostragem dos territórios de lobo inclui áreas com distintos níveis de pressão de predação: áreas onde a presença de lobo é esporádica (limite dos territórios); áreas com presença constante de lobo; e áreas próximas dos locais de criação das referidas alcateias. Na área ocupada por estas alcateias encontra-se igualmente a ser efectuada uma avaliação da dieta, selecção de presas e impacto predatório do lobo.

Indução de comportamentos anti-predatório em manadas

Com o objectivo de verificar a existência de comportamentos anti-predatórios nas manadas de gado é utilizada a simulação de uivos de lobo por voz humana. Torna-se assim possível registar todos os comportamentos pré e pós-estímulo (uivo simulado).

Modelação espacial preditiva do risco de ataque a animais domésticos por parte do lobo

Os locais de ataque do lobo a animais domésticos estão a ser caracterizados de forma a ser possível identificar e qualificar os factores que influenciam o sucesso de predação do lobo. São consideradas diversas variáveis relativas ao habitat e topografia (e.g. rugosidade do terreno, declive, posição topográfica). Com os resultados obtidos e a sua incorporação num Sistema de Informação Geográfico será possível proceder ao mapeamento de áreas com diferentes escalas de risco de para o gado no que respeita à possibilidade de predação pelo lobo.

Com base nos resultados e conclusões obtidos no decorrer deste estudo, pretendemos contribuir para a elaboração de medidas de gestão das manadas que levem a uma menor predação por parte do lobo, sempre respeitando os sistemas tradicionais de pastoreio na região, nomeadamente, fomentando a manutenção das raças autóctones.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Álvares, F. e F.Petrucci-Fonseca (2000). Implications of free-grazing livestock on wolf conservation in Portugal. Symposium Beyond 2000 - Realities of Global Wolf Restoration: pp28. (Duluth-EUA, 23-26 de Fevereiro).

Costa, G. (2000). Situação populacional e ecologia trófica do lobo-ibérico (Canis lupus signatus Cabrera, 1907) na Serra do Soajo. Relatório de Estágio Profissionalizante para obtenção de Licenciatura em Biologia Aplicada aos Recursos Animais – variante terrestre. Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Lisboa 49 pp.

Lima, S. (1995). Back to the basics of anti-predatory vigilance: the group-size effect. Animal Behaviour, 49, 11-20.

Mech, L. D. (1970). The wolf: the ecology and behaviour of an endangered species. Natural History Press, 1st Edition, New York, 384 pp.

 

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