Aspectos comportamentais de um grupo social de texugos – Um estudo com recurso a filmagens obtidas na Natureza

Helena Rio Maior (texto e vídeos) e Carla Marques (vídeos)
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Conheça um estudo sobre o comportamento social do Texugo na Serra de Grândola, centrado sobretudo no comportamento das crias e que recorreu a filmagens no terreno, das quais poderá visualizar e apreciar diversos trechos ao longo deste artigo.

Menos de 15% das espécies de carnívoros vivem em grupos (Gittleman, 1989), constituindo sociedades altamente estruturadas, que exibem comportamentos cooperativos como vigilância organizada para defesa de predadores ou caça em grupo (Woodroffe e Macdonald, 1993). Contudo, outras espécies de carnívoros vivem em grupos sem que se reconheçam benefícios claros desta sociabilidade. O texugo Euroasiático (Meles meles Linnaeus, 1758) é uma dessas espécies, formando grupos compostos por indivíduos de ambos os sexos e idade variada, em que os membros partilham um território e tocas, mas procuram alimento isoladamente (Kruuk, 1978).

O texugo tem sido alvo de atenção no que respeita à compreensão da origem da sociabilidade dos carnívoros (Macdonald, 1983, Kruuk 1989; Cheeseman et al. 1987, Harris e Cresswell 1987 in Woodroffe 1993). A aparente falta de cooperação entre os membros do mesmo grupo é intrigante, já que o texugo Euroasiático possui todas as características demográficas típicas de comportamentos reprodutores cooperativos (Woodroffe, 1993). Vários estudos de comportamento realizados até à data, bem como registos obtidos por observadores amadores não reportam nenhum caso de comportamentos aloparentais. No entanto, Woodroffe (1993) descreveu vários casos atribuíveis a este tipo de cuidados, o que, comprovando-se, seria um exemplo claro de cooperação entre os membros do mesmo grupo (Sanchéz, 1998). Os benefícios que advêm de uma sociabilidade deste tipo são, no entanto, ainda pouco conhecidos.

A realização de estudos etológicos relativos ao texugo, nomeadamente ao nível ontogénico (alterações nos padrões comportamentais ao longo do desenvolvimento do indivíduo), a fim de possibilitar um conhecimento profundo da organização e da causalidade dos padrões comportamentais de uma espécie, surge da necessidade de esclarecer o tipo de socialização deste carnívoro.

O presente estudo teve como objectivo contribuir para o conhecimento dos comportamentos sociais do texugo. Foi dedicada especial atenção ao “brincar social”, componente importante do reportório comportamental de crias de mamíferos, que está a concentrar atenções por parte dos especialistas, por tornar-se cada vez mais claro que uma compreensão detalhada do “brincar” permite tirar conclusões acerca de outros aspectos do comportamento e da ecologia social da espécie (Bekoff, 1972).

METODOLOGIA

Foram efectuadas filmagens com uma vídeo câmara digital acoplada de focos de infra-vermelhos, mantendo-a operativa junto ao complexo principal de tocas de um grupo social durante o período de actividade dos animais (anoitecer, noite e amanhecer). As filmagens decorreram na Serra de Grândola (Sudoeste de Portugal), de 25 de Março a 16 de Maio de 2002, tendo o seu início coincidido com a altura em que as crias de texugo emergiram da toca para iniciarem uma fase de exploração e socialização nas imediações da mesma. Durante todo o período de vigilância, o operador encontrava-se no topo de uma árvore de modo a causar o mínimo de perturbação possível aos indivíduos.

Os dados obtidos, num total de 93 horas de vigilância, permitiram estudar interacções comportamentais entre indivíduos pertencentes a um mesmo grupo social e a ontogenia do comportamento das crias.

O nascimento das crias ocorreu no mês de Março e estas mantiveram-se nas tocas até à idade de cerca de oito semanas. Após as primeiras emergências das tocas, os jovens animais mantêm-se em actividade nas imediações das mesmas, o que ocorreu durante os meses de Abril e Maio. Nesta fase, a actividade das crias perfez um total de 26 horas (28% do total de observações) e os adultos obtiveram um total de 15 horas (16% do tempo total de observação) de actividade (Figura 1).

 

Figura 1

 ETOGRAMA

Foram identificados 20 elementos comportamentais, que permitiram proceder à elaboração do etograma. São eles: espreitar, vigiar, explorar, correr/trotar, perseguir em corrida/trote, esgravatar, fugir, “self-grooming”, “allo-grooming”, “mutual-grooming”, recolher camas, marcar um no outro, marcar no chão, defender, “rosnar”, fintar, fintar mutuamente, agredir ritualmente com deslocamentos, agressão ritualmente sem deslocamentos e contacto neutro.

Alguns dos comportamentos observados podem ser sumariamente descritos e ilustrados com imagens ou fracções de filmes obtidas no decurso do estudo.

Recolha de camas (Vídeo 1)

Uma das principais funções das “camas”, constituídas maioritariamente por vegetação herbácea, é evitar a perda de calor; esta manutenção da temperatura é importante para os adultos durante o seu repouso diurno, mas é, sobretudo, importante quando existem crias nas tocas, as quais nas primeiras semanas das suas vidas, se mantêm inactivas grande parte do tempo (Neal e Cheeseman, 1996).

 

Vídeo 1 - Recolha de camas: O animal transporta material para camas (ervas) com a ajuda das patas dianteiras e deslocando-se para trás (recuando)

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 Marcação

A comunicação olfactiva possui algumas vantagens relativamente a outras formas de comunicação quando os sinais visuais são difíceis de detectar. É o que se verifica no caso dos texugos, uma vez que a sua actividade é essencialmente nocturna e passam também grandes períodos debaixo do solo, no interior das tocas. Os texugos são a única espécie de mustelídeos que possui uma glândula sub-caudal (Hutchings e White, 2000) e, nos comportamentos de marcação observados, é esta glândula que é pressionada contra o solo (marcação no chão) ou em conspecíficos (marcação um no outro). A marcação odorífera pode ocorrer entre todos os membros do mesmo grupo social (Neal e Cheeseman, 1996), o que se verificou neste estudo.

“Grooming”

O comportamento “self-grooming” (Vídeo 2) constitui uma resposta natural por parte dos animais a infestações por parasitas e, possivelmente, a mordeduras de mosquitos (Neal e Cheeseman, 1996).

 

Vídeo 2 - Self-grooming: Esta categoria inclui coçar (com qualquer uma das patas), lamber e catar qualquer parte do corpo

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 Pensa-se que o comportamento “mutual-grooming” (Vídeo 3) tenha uma função essencialmente social e sugere-se também que poderá ainda ajudar a distribuir o odor de um animal por todo o seu corpo. Durante este estudo, apenas se verificou a ocorrência deste comportamento entre adultos, o que pode estar associado a esta função de reforço das relações entre os animais e não tanto a uma função de limpeza e desparasitação.

 

Vídeo 3 - Mutual-grooming: Os animais catam-se e labem-se mutuamente

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 Verificou-se que apenas os adultos fizeram “allo-grooming”, dirigido a animais da mesma faixa etária e a crias. Apesar de este comportamento possivelmente possuir também uma função social, neste caso, parece ser maioritariamente um comportamento de manutenção da pelagem das crias por parte dos adultos.

Comportamentos de vigilância

Os texugos mostram uma elevada frequência de comportamentos de vigilância (Stewart et al., 1997). Espreitar (Figura 2) e vigiar, são estados de atenção redobrada por parte dos animais. Como seria de esperar, estes dois comportamentos foram observados sobretudo em adultos. Provavelmente, quando existem crias na toca, os adultos estão mais atentos porque é necessário protegê-las. Também as crias apresentam comportamentos de vigilância, sobretudo quando ainda não aprenderam a diferenciar os barulhos que são potencialmente perigosos dos que não o são; contudo, a frequência destes comportamentos diminui à medida que decorre essa aprendizagem (Neal e Cheeseman, 1996).

 

Figura 2 - Espreitar: o animal mantém a parte traseira do corpo dentro da toca, movendo a cabeça lentamente, cheirando o ambiente ou mantendo a cabeça estática

 Comportamentos exploratórios

De todos os comportamentos individuais observados, explorar e esgravatar (Vídeo 4) destacaram-se pelas suas elevadas frequências; estes dois comportamentos ocorreram sobretudo em crias, como seria de esperar, já que comportamentos de exploração são típicos de crias de texugo quando iniciam as suas saídas regulares da toca (Neal e Cheeseman, 1996). Ambas as actividades são efectuadas pelos animais com o objectivo de explorar o ambiente envolvente e, fundamentalmente, o solo. Segundo Neal e Cheeseman (1996), na altura do desmame existe um período em que as crias ainda são dependentes do leite materno, mas suplementam a sua dieta com alimentos que obtêm junto à toca, o que sugere que o comportamento “esgravatar”, pelas suas características, está associado à obtenção de alimento.

Vídeo 4 - Esgravatar: o animal mantém-se no mesmo local por períodos relativamente longos, esgravatando no solo e enterrando o focinho com persistência

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Brincar social

Na categoria de brincar social incluem-se as seguintes componentes comportamentais: fintar, fintar mutuamente (Vídeo 5), agredir de forma ritualizada com (Vídeo 6) ou sem deslocamento (Vídeo 7).

 

Vídeo 5 - Fintar mutuamente: Os animais correm, aproximando-se e afastando-se constantemente sem que haja contacto físico

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Vídeo 6 - Agredir ritualmente com deslocamento: Os animais correm um para o outro, havendo contacto físico constante e mordendo-se (dentadas inibidas); por vezes, o emissor empurra o receptor para o chão, tentando mantê-lo deitado (um por cima do outro) com o auxílio de dentadas inibidas que são sempre correspondidas pelo receptor

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Vídeo 7 - Agredir ritualmente sem deslocamento: Os animais mordem-se mutuamente e, por vezes, fica um por cima do outro, sem haver corridas

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Não se verificaram interacções agonísticas entre os indivíduos, pautando-se as suas relações pela tolerância e a sociabilidade.

ONTOGENIA DOS COMPORTAMENTOS DE CRIAS

Na fase imediatamente após as saídas regulares da toca, as crias passam grande parte do tempo nas imediações da toca a brincar e a explorar do ambiente envolvente.

Quando as observações do grupo social de texugos em foco se iniciaram, o reportório dos comportamentos de jogo (brincar social) já era exibido na totalidade pelas crias, mantendo-se até à terceira semana de observações. Nesta fase inicial, as crias não se afastavam das imediações da toca, despendendo muito tempo a brincar entre si.

Seguiu-se uma fase de exploração e procura de alimento junto à toca. Durante a fase exploratória já não se verificaram comportamentos de jogo entre as crias. Esta fase corresponde certamente a uma maior necessidade de suplemento alimentar que antecede a fase em que as crias acompanham os adultos em saídas prolongadas para longe da toca com o objectivo de procura de alimento. A este período segue-se uma fase em que as crias acompanham a sua progenitora e procuram alimento junto dela (Neal e Cheeseman, 1996). Este comportamento foi observado nas crias estudadas durante a quinta semana de observações, em que três crias seguiam um adulto que avançava cautelosamente no campo.
FUNÇÕES DO BRINCAR SOCIAL

Numa tentativa de efectuar uma análise à luz das funções que o brincar social desempenha na ontogenia das crias, verifica-se que os comportamentos das crias de texugo estudadas não são claramente reconhecidos como comportamentos de animais altamente sociais.

A teoria de que o brincar social permite o estabelecimento de uma hierarquia de relações de dominância entre os animais, não parece adequar-se às crias de texugo. Nos comportamentos de jogo observados, a posição dos animais envolvidos aparentou ser aleatória, não tendo sido perceptível, em nenhuma ocasião, um “vencedor” e um “vencido”. Também o local do corpo a que os animais dirigiam as dentadas pareceu ser perfeitamente aleatório, ao contrário do que se verifica, por exemplo, em crias de lobo Kopaliani e Badridze (1981), em que os padrões comportamentais do brincar tornam-se a base do comportamento de caça em adultos; com efeito, nestes canídeos, os locais do corpo onde o emissor morde têm correspondência directa com os locais do corpo onde os adultos atacam as suas presas. Esta aleatoriedade no local do corpo a que as dentadas de texugo são dirigidas vai de encontro ao esperado, dada a alimentação base da espécie na Serra de Grândola (predominantemente frutos e insectos (Rosalino et al., 2005)) e o facto de esta espécie, por norma, não capturar presas de grande porte, não sendo necessária uma estratégia cooperativa para a sua captura.

Desta forma, o brincar social em crias de texugo, parece ter uma função meramente de socialização entre os animais. Além disso, poderá também estar associado, entre outras razões, à aquisição de experiência para as mais diversas situações por parte dos intervenientes como defende Leyha (1965 in Bekoff, 1972), a uma ajuda na integração funcional dos padrões inatos, como defende Eisenberg (1966 in Bekoff, 1972), ou a um instinto dos animais que lhes permite obter benefícios fisiológicos como, por exemplo, tónus muscular, como defendido por Brownlee (1954 in Bekoff, 1972).

Por fim, o facto de ter sido verificado que as crias mantêm relações com todos os adultos presentes na toca vem, de certa forma, reforçar a teoria de que a cooperação entre texugos é uma realidade, uma vez que todos os membros do grupo social participam, directa ou indirectamente, no desenvolvimento das crias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bekoff, M. (1972). The development of social interaction, play, and metacommunication in mammals: an ethological perspective. The Quarterly Review of Biology, 47, 412-434.

Gittleman, J.L. (1989). Carnivore group living: comparative trends. Pp. 183-208 in Carnivore Behavior, Ecology and Evolution (J.L. Gittleman, eds). Chapman and Hall, London, 620pp.

Hutchings, M. R. e White, P.C.L. (2000). Mustelid scent-marking in managed ecosystems: implications for population management. Mammal Review, 30, 157-169.

Kopaliani N., e Badridze, J. (1981). The role of play in the formation of hunting behavior in a group of six wolf pups raised in captivity (Canis lupus cubaniensis).

Kruuk, H. (1978). Spatial organization and territorial behavior of the European badger Meles meles. Journal of Zoology (London), 184, 1-19.

Kruuk, H. (1989). The Social Badger. Ecology and behaviour of a group-living carnivore. Oxford University Press, New York, 155pp.

Macdonald, D.W. (1983). The ecology of carnivore social behaviour. Nature, 301, 379-384.

Neal, E. e Cheeseman, C. (1996). Badgers. T & AD Poyser Natural History, London, 271pp.

Rosalino, L. M., Loureiro, F., Macdonald, D. W. e Santos-Reis, M. (2005). Dietarry shifts of the badger (Meles meles) in Mediterranean woodlands: na opportunistic forager with seasonal specialisms. Mammalian Biology, 70, 12-23.

Sánchez, E. R. (1998). Organización social del tejon en Doñana. Tesis doctoral. Universidad de León, 222pp.

Stewart, P.D., Ellwood, S.A. e Macdonald, D.W. (1997). Remote video-surveillance of wildlife - an introduction from experience with the European badger Meles meles. Mammal Review, 27, 185-204.

Woodroffe, R. e Macdonald, D.W. (1993). Badger sociality models of spatial grouping. Symposia of the Zoological Society of London, 65, 145-169.

 

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