Ecologia e Conservação da Andorinha-do-mar-anã nas Salinas de Castro Marim e Cerro do Bufo

Teresa Catry
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A Andorinha-do-mar-anã é uma ave migradora, que na Primavera procura locais pouco perturbados para nidificar. Em virtude da crescente pressão sobre o meio natural, ela utiliza, frequentemente, biótopos semi-naturais: as salinas.

No debate actual sobre a conservação da natureza, é dado grande relevo ao problema das espécies raras e ameaçadas, uma vez que estas são um sinal inequívoco da ameaça à diversidade específica, merecendo, por isso, a nossa urgente atenção. A responsabilidade internacional de salvaguardar as espécies ameaçadas depende do conhecimento adquirido sobre a sua distribuição, tendências populacionais e factores que as ameaçam (Lloyd et al. 1991, Tucker and Heath 1994). Uma dessas espécies é a Andorinha-do-mar-anã Sterna albifrons.

A Andorinha-do-mar-anã (Sterna albifrons) é uma espécie migradora, que tem uma vasta área de distribuição, estando presente em todos os continentes. No Paleárctico Ocidental a área de nidificação estende-se desde a Costa Atlântica até à Ásia Central, e do Mediterrâneo até à Rússia. As populações europeias ocidentais invernam na África Ocidental e do Sul e as populações europeias orientais invernam no Mar Vermelho e no Sudoeste da Arábia (Cramp 1985). A população europeia está estimada em cerca de 19.000 casais e a mundial entre 70.000 e 100.000 (Lloyd et al. 1991).



Na Europa, o declínio das populações e da área de distribuição da Andorinha-do-mar-anã verificado nos séculos XIX e XX é consequência, principalmente, da perturbação humana e de excessivas alterações no habitat (e.g. Haddon and Knight 1983, Tucker and Heath 1994). Assim, esta espécie está incluída nas SPECs (“Species of European Conservation Concern”), na categoria SPEC 3, que corresponde a espécies com estatuto de conservação desfavorável (Tucker and Heath 1994) e listada na Convenção de Berna (Anexo II) e Directiva Aves (Anexo I).

Em Portugal, a Andorinha-do-mar-anã tem o estatuto de vulnerável (SNPRCN 1990). Está presente em toda a costa litoral e também nalgumas albufeiras do interior, embora a grande maioria da população reprodutora esteja concentrada a sul do Tejo, principalmente na costa algarvia (Rufino 1989). A população reprodutora nacional, estimada em 300 casais, entre 1981 e 1983, sofreu um declínio acentuado até meados da década de oitenta (Araújo e Pina 1984, Teixeira 1984), não se conhecendo com pormenor a tendência nacional registada posteriormente.

As salinas de Castro Marim e do Cerro do Bufo localizam-se na bacia hidrográfica do Guadiana, junto à foz, e estão incluídas na Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António. Contam-se entre as principais áreas de nidificação de Andorinha-do-mar-anã a nível nacional, tendo reunido 26% do total dos casais em 1981 (Araújo e Pina 1984). Apesar de constituírem um biótopo artificial, criado pelo Homem, as salinas enquadram-se nos principais ecossistemas estuarinos portugueses (Neves e Rufino 1992) e a sua importância ornitológica é internacionalmente reconhecida (Britton and Johnson 1987, Neves e Rufino 1992, Velasquez 1992).



À semelhança do que aconteceu a nível nacional, também nas salinas de Castro Marim se registou um declínio importante no efectivo reprodutor da Andorinha-do-mar-anã nos anos 80 (Araújo e Pina 1984). A perturbação humana e a irregularidade no nível de água dos tanques abastecedores, resultando no alagamento das posturas, foram apontados como as principais causas desse declínio.

Quase 20 anos mais tarde urge reavaliar a situação da Andorinha-do-mar-anã nas salinas de Castro Marim. Apenas com um conhecimento profundo desta população é possível avaliar a necessidade de implementar medidas de conservação, bem como desenhar as melhores estratégias globais de conservação.

Assim, para este estudo definiram-se quatro objectivos principais: (1) estimar a população reprodutora de Andorinha-do-mar-anã nas salinas de Castro Marim e do Cerro do Bufo, (2) avaliar a produtividade das colónias estudadas, (3) identificar os factores que influenciam negativamente a produtividade das colónias e (4) identificar as acções prioritárias de gestão para a conservação desta espécie, nas salinas de Castro Marim e Cerro do Bufo.

Este estudo realizou-se entre Abril e Agosto de 2000 (Catry 2000). A detecção dos ninhos baseou-se na observação de aves adultas a incubar e na prospecção sistemática em locais onde as aves evidenciavam comportamentos típicos de nidificação (e.g. voos de cortejamento, entregas de alimento, defesa do ninho, entre outros). Todos os ninhos foram visitados regularmente. Sempre que as posturas desapareceram antes da data provável de eclosão, procurou-se identificar as causas do desaparecimento, particularmente se este resultou da predação, actividades humanas ou factores ambientais (principalmente pluviosidade). A produtividade foi definida como a razão entre o número máximo de juvenis voadores observados simultaneamente e o número total de posturas.

Foram estimados entre 51 e 82 casais reprodutores, tendo-se contabilizado um máximo de 59 posturas em Castro Marim (quatro núcleos reprodutores) e 23 no Cerro do Bufo (um núcleo reprodutor). A produtividade da colónia de Castro Marim foi de 0.33 juvenis/postura e a do Cerro do Bufo foi nula. A destruição de posturas foi a principal causa do elevado insucesso reprodutor verificado nas duas colónias, responsável pela perda de 59,8% das posturas. Os factores de destruição identificados foram, por ordem decrescente de importância, a predação (51.2%; n=42) (maioritariamente por cães assilvestrados, Tartaranhão-caçador (Circus pygargus) e gaivotas (Larus sp.), as actividades humanas (4.9%; n=4) (circulação de veículos e pisoteio) e factores climáticos (3.7%; n=3) (pluviosidade).



Os predadores das posturas de Andorinha-do-mar-anã identificados coincidem com os referidos na maioria dos estudos desta espécie (Lloyd et al. 1991, Haddon and Knight 1983, Holloway 1993), salientando-se os cães assilvestrados, já identificados no mesmo local, em trabalhos anteriores (Dias 1999), e o Tartaranhão-caçador, considerado um predador pouco comum (Haddon and Knight 1983), mas habitual na área de estudo.

A reduzida probabilidade de predação em colónias de grandes dimensões, tanto por efeito de diluição, como por defesa contra os predadores, é uma das principais hipóteses que explica a nidificação colonial de muitas espécies de aves (e.g. Wittenberger and Hunt 1985, Krebs and Davies 1991, Nisbet and Welton 1984, Brunton 1997). Porém, a colonialidade apresenta a desvantagem de tornar os ninhos com ovos e/ou crias mais conspícuos para os predadores (Krebs and Davies 1991). As colónias estudadas são de pequenas dimensões, o que não permite uma defesa muito eficaz contra predadores (obs.pess.) sendo, no entanto, suficientemente conspícuas para que estes as detectem com relativa facilidade. A associação da Andorinha-do-mar-anã com outras espécies que nidificam no mesmo habitat, como o Perna-longa (Himantopus himantopus) e o Alfaiate (Recurvirostra avosetta), parece ser-lhe benéfica, já que qualquer uma das outras espécies é bastante mais eficaz na defesa dos ninhos.

A predação de posturas foi relativamente constante ao longo da época reprodutora, não parecendo constituir um factor que implique que as aves nidifiquem num período determinado. No entanto, poderá favorecer uma maior sincronia de nidificação. Vários estudos demonstraram que uma maior sincronia na nidificação de aves marinhas coloniais permite um maior sucesso reprodutor na colónia (e.g. Nisbet 1975, Birkhead 1977). De facto, verifica-se que em Castro Marim, a grande maioria das posturas que eclodiram correspondiam a posturas existentes na segunda quinzena de Maio, o período com maior número de posturas simultâneas. A sincronia na nidificação é especialmente importante em colónias de pequenas/médias dimensões, nas quais as taxas de predação são elevadas: quanto maior for o número de casais a criar, num curto período de tempo, maior será a probabilidade de uma postura eclodir, assumindo que a predação se mantém constante.

Nas salinas do Cerro do Bufo, a maior sincronia das posturas ocorreu na primeira quinzena de Junho. No entanto, esta sincronia não evitou que quase todos esses ninhos fossem destruídos na quinzena seguinte, provavelmente num único evento de destruição, dada a grande proximidade dos ninhos e a simultaneidade da destruição.

A perturbação humana ligada à actividade salineira e as flutuações do nível de água das salinas foram anteriormente considerados os principais factores responsáveis pelo insucesso reprodutor da espécie em habitat de salinas, nomeadamente nas salinas de Castro Marim (Araújo e Pina 1984, Teixeira 1984, Calado 1989).



No presente estudo, estes factores tiveram um impacto reduzido, sendo responsáveis pela destruição apenas de 8.6% (n=7) do total das posturas. O período de maior actividade humana nas salinas não coincidiu com o período mais crítico da nidificação da Andorinha-do-mar-anã. O processo da exploração de sal teve início nos primeiros dias de Maio, com a limpeza das caldeiras e das superfícies cristalizadoras, tendo já terminado quando as aves começaram as suas posturas (em meados de Maio). Por sua vez, a extracção do sal começou na segunda quinzena de Junho nalgumas salinas artesanais, quando já não existiam posturas neste tipo de salinas; nas salinas do tipo semi-industrial, onde a reprodução se prolongou até ao início de Julho, este processo só se iniciou na segunda quinzena de Julho, tendo-se prolongado até ao final de Setembro.

No que respeita a flutuações no nível de água das salinas, este não parece ser um factor preocupante na área de estudo, uma vez que as Andorinhas-do-mar-anãs nidificam nos cômoros, bem acima do nível de água, e não nos próprios tanques abastecedores. Maior importância tem a queda de ovos para dentro dos tanques nalgumas salinas de cômoros com reduzida largura e grande inclinação, problema este já identificado em estudos anteriores (Dias 1999).


Uma vez identificados os requisitos ecológicos, bem como os principais factores de ameaça da Andorinha-do-mar-anã nas salinas de Castro Marim e Cerro do Bufo, é possível enumerar algumas acções prioritárias de gestão para a conservação desta espécie. Assim, a manutenção das colónias de Andorinha-do-mar-anã nestas salinas parece depender, fundamentalmente, de três factores:

1. Manutenção e gestão das salinas. Actualmente é opinião unânime que a forma mais eficaz de conservar as salinas é mantê-las em actividade (Britton and Johnson 1987, Neves e Rufino 1994, Velasquez 1992, Pullan 1998, Dias 1999). O abandono das salinas, e a consequente degradação do habitat, é prejudicial a um grande número de espécies de aves, nomeadamente à Andorinha-do-mar-anã, para a qual as salinas constituem locais de primordial importância como zonas de nidificação (Neves e Rufino 1992). No entanto, a possibilidade de colocar todas as salinas a produzir sal é pouco realista do ponto de vista financeiro. Deste modo, foi sugerido que se adoptem também medidas de gestão para as salinas abandonadas, nomeadamente através da gestão de níveis de água e da manutenção de comportas e esteiros (Neves e Rufino 1994).

2. Calendarização do ciclo anual da exploração salineira. A intensa perturbação provocada pela actividade salineira nas áreas de nidificação da Andorinha-do-mar-anã pode trazer consequências drásticas para o sucesso reprodutor desta espécie, se decorrer em simultâneo com o período de maior actividade reprodutora. Assim, a fixação de uma calendarização, que determine que o início da actividade salineira não se deverá prolongar para além do mês de Abril e que a preparação para a extracção do sal só deverá ter início no mês de Julho, revela-se de extrema importância para a conservação desta espécie.

3. Implementação de medidas de controlo da predação. A predação constitui, actualmente, o principal factor responsável pelo insucesso reprodutor da Andorinha-do-mar-anã nas salinas de Castro Marim e do Cerro do Bufo. Assim, e uma vez que se conhecem os principais predadores, parece prioritária a implementação de medidas de controlo apropriadas. Em Portugal, a experiência neste tipo de acções é extremamente reduzida, de modo que qualquer conjunto de medidas deverá ser bem avaliado e ter como base a experiência internacional. De um modo geral, o controlo da predação terrestre (maioritariamente efectuada por cães e raposas) pode ser realizado através da edificação de vedações, electrificadas ou não, em torno das colónias ou com vigilância nocturna do local (e.g. Haddon and Knight 1983, Rimmer and Deblinger 1992). O controlo da predação aérea, nomeadamente no que respeita à predação de ovos, está menos desenvolvido e parece ser mais problemático. O controlo letal de predadores e a indução, nestes indivíduos, de um comportamento de aversão face ao alimento, recorrendo ao uso de ovos tratados com compostos químicos repelentes, parecem constituir as poucas soluções disponíveis. No entanto, ambas apresentam defeitos e nem sempre têm resultados positivos, podendo não constituir soluções adequadas (Haddon and Knight 1983, Nicolaus et al. 1983, Ó Briain and Farrely 1990, Avery et al. 1995, Catry 2000).



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