Selecção de Habitat do Francelho-das-torres numa Área de Pseudo-estepes na Região de Castro Verde

Inês Catry
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O Francelho-das-torres é um pequeno falcão profundamente lesado pela intensificação da agricultura. A perda progressiva dos habitats preferenciais de caça tem constituído o principal factor de ameaça às populações desta espécie.

Na Europa Ocidental, a quase globalidade dos ecossistemas naturais foi parcialmente alterada pelo Homem (Leitão e Moreira 1996). Na Península Ibérica, e nomeadamente em Portugal, as estepes naturais não existem, mas o carácter extensivo da agricultura em determinadas áreas do país, designadamente em algumas zonas do Alentejo, tem permitido a manutenção de diversas espécies de aves que se adaptaram a este habitat semi-natural, apelidado de pseudo-estepe ou estepe cerealífera (Goriup 1986, Moreira e Leitão 1996).

A região de Castro Verde engloba as mais importantes pseudo-estepes cerealíferas de Portugal e está classificada como IBA (“Important Bird Area”), biótopo Corine e ZPE (Zona de Protecção Especial) (SNPRCN 1992 in Delgado 1992, Rufino e Neves 2000). É no concelho de Castro Verde que se situa a maior colónia de Francelho-das-torres (Falco naumanni).

O Francelho-das-torres é um pequeno falcão colonial, característico de áreas abertas e cultivadas (Cramp e Simmons 1980). Alimenta-se maioritariamente de insectos (Orthoptera e Coleoptera), consumindo répteis e pequenos mamíferos quando aqueles escasseiam (Cramp e Simmons 1980, Tejero et al. 1982)

Macho de Francelho-das-torres


Considerado, no passado, como uma das aves de rapina mais comuns na Europa (Irby 1875, Bijleveld 1974), sofreu recentemente um forte declínio populacional (Cramp e Simmons 1980, Tucker e Heath 1994) estando classificado actualmente como “Espécie Globalmente Ameaçada” na categoria SPEC1 (“Species of European Conservation Concern”) (Collar et al. 1994).

Em Espanha, a população foi estimada em 20.000 - 50.000 casais nos anos 70, decaindo para aproximadamente 5.000 casais em 1989 (González e Merino 1990). Também em Portugal se registou um declínio marcado; nos anos 80 Grimmett e Jones (1989) estimaram a população nacional em 300-500 casais e, posteriormente, Araújo (1990) estimou-a em 150 casais.


Em toda a Europa, a Política Agrícola Comum tem condicionado as práticas agrícolas; a crescente intensificação da agricultura e o abandono das práticas tradicionais conduziram, nas últimas décadas, a uma perda progressiva dos habitats preferenciais de caça desta espécie, constituindo o principal factor de ameaça às suas populações (Donázar et al. 1993, Bustamante 1997). Assim, é muito importante determinar quais os habitats seleccionados por esta espécie, no sentido de estabelecer directivas futuras que visem a sua conservação.

Neste estudo procurou-se, recorrendo à telemetria, identificar os habitats de caça preferenciais desta espécie em redor da colónia. Para isso capturaram-se 33 francelhos, nos quais foram colocados rádio-emissores. Os emissores, sem interferirem no comportamento e sucesso de reprodução das aves (Catry 2000), possibilitaram o seu seguimento desde 13 de Março a 14 de Julho. Foram montadas 3 antenas fixas em locais elevados, formando um triângulo, de modo a cobrir uma grande área em redor da colónia, com sobreposição de alcance entre si. As localizações dos francelhos com emissores foram obtidas pela intersecção das direcções dadas simultaneamente por cada antena.

A tabela 1 apresenta o número de localizações obtidas para cada biótopo, nos períodos anterior e posterior ao início das ceifas (optou-se por considerar dois períodos distintos para melhor compreensão dos dados).



Tabela 1. Número de localizações obtidas por habitat, para o conjunto dos indivíduos seguidos nos períodos anterior e posterior ao início das ceifas e disponibilidade dos mesmos na área de estudo (P1, P2, P3 e P4: pousios com 1, 2, 3 e 4 anos, respectivamente, Pind: pousio de idade indeterminada; Pinhal: plantações recentes de pinheiros; Outros: olival, eucaliptal, linho e povoações; Desc.: habitat indeterminado; ha: hectares).

 


Para determinar as preferências dos francelhos foi calculado o índice D de Jacobs, que compara a percentagem de localizações em cada habitat com a disponibilidade dos mesmos na área de estudo. Este índice foi calculado para diferentes distâncias à colónia.



Os resultados obtidos neste estudo permitem afirmar que não existe uma exploração aleatória dos habitats pelo Francelho-das-torres e que o uso dos diferentes biótopos não reflecte a disponibilidade dos mesmos. De facto, parecem existir preferências claras por determinados biótopos.

 


Mesa de uma das antenas fixas





Relativamente ao período anterior ao início das ceifas, a selecção positiva dos pousios poderá ser explicada pela maior acessibilidade das presas neste tipo de biótopo. O elevado sucesso de caça em áreas abertas e com vegetação rasteira é referido como responsável pela eleição destes locais (Donázar et al. 1993, Tella et al. 1998). A razão pela qual o pousio de 1 ano (P1) foi menos utilizado poderá estar relacionado com o facto das parcelas deste biótopo coincidirem com áreas muito pastoreadas e, consequentemente, com menor disponibilidade de alimento. Também a aveia foi seleccionada neste período, reflectindo que em locais muito próximos da colónia, os habitats poderão ser seleccionadas não pela maior disponibilidade e/ou acessibilidade das presas, mas pela sua proximidade à colónia.

Para determinar as preferências dos francelhos foi calculado o índice D de Jacobs, que compara a percentagem de localizações em cada habitat com a disponibilidade dos mesmos na área de estudo. Este índice foi calculado para diferentes distâncias à colónia.

Os resultados obtidos neste estudo permitem afirmar que não existe uma exploração aleatória dos habitats pelo Francelho-das-torres e que o uso dos diferentes biótopos não reflecte a disponibilidade dos mesmos. De facto, parecem existir preferências claras por determinados biótopos.

 


Seara de Trigo



Relativamente ao período anterior ao início das ceifas, a selecção positiva dos pousios poderá ser explicada pela maior acessibilidade das presas neste tipo de biótopo. O elevado sucesso de caça em áreas abertas e com vegetação rasteira é referido como responsável pela eleição destes locais (Donázar et al. 1993, Tella et al. 1998). A razão pela qual o pousio de 1 ano (P1) foi menos utilizado poderá estar relacionado com o facto das parcelas deste biótopo coincidirem com áreas muito pastoreadas e, consequentemente, com menor disponibilidade de alimento. Também a aveia foi seleccionada neste período, reflectindo que em locais muito próximos da colónia, os habitats poderão ser seleccionadas não pela maior disponibilidade e/ou acessibilidade das presas, mas pela sua proximidade à colónia.

Com o início da época das ceifas, em meados de Junho, a maior acessibilidade das presas, derivada do corte do cereal, explica que mais de 50% das localizações estejam situadas nestes biótopos (aveia e trigo). De facto, neste período observaram-se os maiores bandos de francelhoss em actividade de caça, seguindo sistematicamente as ceifeiras e as enfardadoras. A caça nos restolhos de trigo e aveia, perseguindo as ceifeiras, é referida por vários autores (Bijlsma et al. 1988, Rocha 1995) e parece ser de grande importância num período em que a alimentação das crias requer grandes quantidades de alimento. A abundância de insectos nos campos que estão a ser ceifados é tão grande que os francelhos chegam a deslocar-se a vários quilómetros da colónia para obter alimento. Neste período, também os pousios continuam a ser seleccionados, constituindo locais favoráveis de caça, essencialmente em dias em que não há ceifa.

 


Fêmea de Francelho-das-torres


Em toda a área de estudo a aveia foi o primeiro cereal a ser ceifado (início da ceifa a 21 de Junho), coincidindo com o pico da alimentação da maioria das crias (data média de eclosão -10 Junho) e, por esta razão, as áreas de restolho deste biótopo poderão ter sido mais utilizadas comparativamente às áreas de trigo, ceifadas posteriormente, quando a necessidade de alimento era menor.


Para os dois períodos considerados e, tal como esperado pela distribuição desta espécie no Paleárctico Ocidental (Cramp e Simmons 1980), registou-se a selecção negativa das áreas arborizadas. A densa cobertura vegetal deverá tornar as presas menos acessíveis aos francelhos, tanto nas áreas arborizadas (Toland 1987 in Donázar et al. 1993), como no setaside.

O efeito das alterações do habitat causadas pelo progressivo abandono dos campos e consequente colonização por espécies arbustivas, a substituição das culturas de sequeiro pelos regadios, a intensificação e introdução de novas culturas, as plantações florestais e o uso de pesticidas e herbicidas parecem determinar a tendência de regressão das populações do Francelho-das-torres (Donázar et al. 1993, Tucker e Heath 1994, Bustamante 1997, Tella et al.1998). A perda de habitats de caça favoráveis, pela alteração das práticas agrícolas tradicionais, parece ser o factor responsável pela redução da produtividade e pelo declínio de várias populações desta espécie (Donázar et al. 1993, Rocha 1995).


Emissor


Uma região vizinha alberga uma das maiores colónias de Francelho-das-torres no nosso país. Num raio de 3 Km em redor dessa colónia, as formações arbustivas (matos) e/ou arbóreas (pinhal, eucaliptal, montado de azinho e pomares) suplantam grandemente as formações herbáceas (pousios, cereais e alqueive) e têm vindo a aumentar (Rocha 1995, Rocha 1996). A cada vez menor disponibilidade de áreas de caça favoráveis (essencialmente pousios e cereais) obriga a que as aves se desloquem muito para além das imediações da colónia para obter alimento para as crias, podendo conduzir a uma subnutrição das mesmas e, consequentemente, a um decréscimo no sucesso reprodutor (Rocha 1995). O declínio dessa população e o aumento da população em estudo (a cerca de 40 Km de distância) sugere a maior disponibilidade de habitats de caça preferenciais circundantes a esta colónia e o consequente maior sucesso reprodutor.

Tal como verificado em Espanha (Tella et al. 1998), as pseudo-estepes com cultivo extensivo tradicional, características da área estudada, permitem a subsistência das populações de Francelho-das-torres pela maior disponibilidade e acessibilidade ao alimento e pelo consequente maior sucesso reprodutor. Assim, o ponto de partida para a conservação desta espécie passa necessariamente pela conservação do habitat e da diversidade do “mosaico agrícola”, e está totalmente dependente da Política Agrícola Comum. É necessário e urgente a aplicação de regulamentos agrícolas compatíveis com a conservação da natureza e centrados na manutenção das práticas agrícolas tradicionais e das estepes cerealíferas.


Colónia de Francelhos

 





Bibliografia

Bijleveld, M. (1974). Birds of Prey in Europe. Macmillan Press, London.

Bijlsma, S., Hagemeijer, E. J. M., Verkley, G. J. M. e Zollinger, R. (1988). Ecological aspects of the Lesser Kestrel in Extremadura (Spain). Report 285 Werkgroep Dieroecologie, Vakgroep Experimentele Zoologie, Katholieke Univ. Nijmegen.

Bustamante, J. (1997). Predictive models for Lesser Kestrel Falco naumanni distribution, abundance and extinction in southern Spain. Biological Conservation 80: 153-160.

Catry, I. (2000). Biologia da Reprodução e Selecção de Habitat do Peneireiro-das-torres (Falco naumanni) na região de Castro Verde. Relatório de estágio para obtenção da licenciatura em Biologia Aplicada aos Recursos Animais Terrestres, FCUL, Lisboa.

Collar, N. J., Crosby, M. J. e Stattersfield, A. J. (1994). Birds to watch 2: the world list of threatened birds. Cambridge, U. K.: Birdlife International (Birdlife Conservation Series nº 4).

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Delgado, A. (1997). Variação annual da utilização da estepe cerealífera de Castro Verde pela avifauna. Relatório de estágio profissionalizante da Licenciatura em Biologia Aplicada aos Recursos Animais-Variante Terrestre, FCUL, Lisboa.

Donázar , J. A., Negro, J. J. e Hiraldo, F. (1993). Foraging habitat selection, land-use changes and population decline in the Lesser Kestrel Falco naumanni. Journal of Applied Ecology 30: 512-522.

González, J. L. e Merino, M. (1990). El cernícalo primilla Falco naumanni en la Península Ibérica. Situación, problemática y aspectos biológicos. ICONA, Serie Técnica, Madrid.

Goriup, P. D. (1986). Ecology and Conservation of Grassland Birds. International Council for Bird Preservation, Queens University, Kingston, Ontario, Canadá.

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Irby, H. L. (1875). The ornithology of the Straits of Gibraltar. London.

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Rocha, P. 1995. O Peneireiro-de-dorso-liso (Falco naumanni, Fleisher 1818) na região de Mértola-Castro Verde: biologia e ecologia de uma ave de presa colonial. Relatório de estágio para obtenção de licenciatura em Recursos Faunísticos e Ambiente, FCUL, Lisboa.

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Tella, J. L., Forero, M. G., Hiraldo, F. e Donázar, J. A. (1998). Conflicts between Lesser Kestrel conservation and european policies as identified by habitat use analyses. Conservation Biology 12 (3): 593-604.

Tucker, G. M. e Heath, M. F. (1994). Birds in Europe: their conservation status. Cambridge, U. K.: Birdlife International (Birdlife Conservation Series nº 3).

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