Conservação da biodiversidade e a Rede Natura 2000 em Portugal

Miguel Araújo
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75% de Portugal estão incluídos nos 1.4% do planeta necessários para conservar uma parte significativa da biodiversidade mundial. Aqui o Dr Miguel Araújo, investigador do Museu Britânico, discute as implicações deste importante facto e de como a Rede Natura 2000 pode ou não contribuir para este objectivo.

O actual ritmo actual de extinções no planeta é 100 vezes superior à média paleontológica (1). Para inverter esta tendência é necessário afectar uma proporção significativa do território a uma gestão para conservação. Em Portugal, as áreas protegidas ocupam 7.2% do território nacional. A proposta nacional para os sítios Natura 2000 aumenta, em 14.1%, a área afecta à conservação. Na hipótese destas áreas serem incluídas na lista final de sítios da Rede Natura 2000, Portugal terá 21.3% do seu território classificado. Será suficiente? A resposta exacta é desconhecida mas investigadores calculam que a área necessária para reduzir, de forma significativa, o ritmo actual de extinções oscila entre 50-70% dos territórios nacionais (2).

Tabela - Espécies na base de dados e estimativa da percentagem que representam em relação ao total nacional

Naturalmente, esta percentagem é variável de país para país. Em Portugal, a informação necessária para responder a esta pergunta é escassa e está dispersa. Porém, considerando que mais de 75% do território nacional estão englobados nos apenas 1.4% do planeta necessários para conservar 44% das plantas vasculares e 35% dos vertebrados a nível mundial (3), é crível que qualquer análise rigorosa da biodiversidade portuguesa aponte para a necessidade de gerir uma percentagem elevada do território com fins de conservação. Um projecto em curso no Museu de História Natural de Londres permite começar a responder a estas questões de uma forma sistemática e quantitativa (4,5,6). Por exemplo, usando dados, ainda bastante incompletos, sobre a distribuição de espécies de fauna e flora em Portugal (tabela e figura) estima-se que sejam necessários 77% do território para que as espécies consideradas persistam, com um nível de probabilidade de 0.90. Estas estimativas têm uma margem de erro que decorre dos métodos, escala e qualidade dos dados utilizados. No entanto é patente que, mesmo usando dados que representam uma ínfima parte da biodiversidade portuguesa, a área necessária para assegurar a sua persistência seja 10 vezes superior ao actual sistema de áreas protegidas e aproximadamente 4 vezes superior ao somatório das áreas protegidas com a Rede Natura 2000.


 
Figura - Mapa da diversidade correspondente a 1139 espécies de plantas, vertebrados e invertebrados em Portugal continental (esquerda). Padrões de diversidade entre espécies não representadas no sistema de áreas protegidas (direita). Os dados estão referenciados em quadrículas UTM de 10 por 10 km. As cores reflectem gradientes de diversidade. Máximo a vermelho e mínimo a azul. Branco refere-se a ausência de registos. Os círculos cinzentos no mapa da direita representam área protegidas.


É a lista nacional de sítios para a Rede Natura 2000 suficiente?
Serão estas análises indicativas de que a lista nacional de sítios para a Rede Natura 2000 é insuficiente?

- Não necessariamente. A selecção de sítios para a Rede é feita com base em critérios da União Europeia. O objectivo da Rede não é preservar a biodiversidade portuguesa mas apenas uma componente considerada relevante a nível Europeu. No entanto, a qualidade da lista não é absoluta mas relativa a um total nacional de espécies e habitats, prioritários, que se desconhece. Também se desconhecem os motivos exactos que levaram à inclusão ou exclusão de cada um sítios em análise. Sem esta informação não é possível avaliar, com rigor e de forma independente, a qualidade da lista de sítios apresentada.

Podemos, no entanto, começar a contabilizar as áreas que foram incluídas e excluídas e avaliar a sua representatividade. Por exemplo, da lista inicial de 69 sítios foram excluídos 14 (Serra do Larouco, Serra da Padrela, Moncorvo, Freixiel, Sr. da Pedra, Serra da Lapa, Paul de Madriz, Paul do Taipal, Mata Nacional do Urso, Tejo/Ocreza, Toulões, Paul do Bouquilobo, Torrão, Odeleite e Luzianes) e acrescentados 6 sítios novos (Serra d´Arga, Nisa/Lage de Prata, Cerro da Cabeça, Azebuxo/Leiria, Cambarinho e Barrinha do Esmoriz). Há ainda 3 sítios que foram excluídos da lista mas integrados nas ZPEs, isto é, em sítios para conservação da avifauna (Rio Côa, Ria de Aveiro e Tejo Internacional). No total foram seleccionados 59 sítios que acrescentam 925.309 hectares ao sistema nacional de áreas protegidas.


Entre os sítios excluídos contam-se 4 áreas consideradas importantes para o Lince Ibérico (Tejo-Ocreza, Torrão, Luzianes e Odelouca) e 3 áreas para o Lobo (Serras do Larouco, da Padrela e da Lapa). Serão estas áreas negligenciáveis para a conservação das duas espécies? Alguns dos sítios excluídos contam com ocorrências de habitats e/ou espécies prioritárias, raras, no contexto nacional. É o caso, por exemplo, da Serra do Larouco (habitat: prados de Nardus stricta que ocorre apenas noutro local), Moncorvo (espécie de planta: Holcus seligumis duriensis que ocorre apenas noutro local) e Mata do Urso (habitat: dunas com Salix arenaria que ocorre apenas noutro local; e espécie de planta: Thorella verticillatinundata que ocorre apenas em 3 outros locais). 

É fundamental que a lista de sítios agora identificada não seja assumida como uma lista estática. Como qualquer outra figura de planeamento é necessário prever a sua revisão e actualização. É possível que há medida que o conhecimento avance sejam identificadas novas áreas prioritárias. É igualmente possível que, há luz dos novos conhecimentos, possam ser desafectadas áreas agora classificadas.


É o conflito entre produção e conservação inconciliável?
No cerne do conflito que envolve a selecção de áreas para a Rede Natura 2000 estão lógicas contraditórias. De um lado está o sector da conservação. A lógica é o da maximização da área afecta à Rede. Do outro lado está o sector de produção. A lógica é o da minimização da área afecta à Rede. À pergunta - "Qual a área necessária para assegurar os objectivos da Rede?" - impõe-se uma resposta de natureza técnica. Porém, para que a solução técnica seja socialmente aceite é necessário responder a questões lícitas, como: - Quem paga os custos da política de conservação?

Infelizmente esta pergunta não foi devidamente esclarecida durante o período de consulta pública. Que poderiam os proprietários das áreas opinar quando se vislumbram mais restrições sobre o uso do território, sem que qualquer esclarecimento fosse dado em matéria de medidas compensatórias? Os mais optimistas - e conhecedores do funcionamento da União Europeia - prevêem que sejam criadas linhas de financiamento, Europeias, específicas para a gestão dos sítios Natura 2000. Os lobbies ambientalistas defendem que este financiamento deva ser proporcionado através de uma transferência de verbas associadas à produção agrícola para o sector da conservação. Assim, por exemplo, em vez de se atribuir ao agricultor um subsídio para produzir 100 hectares de girassol, pode-se financiar a "produção" de um total de 15 abetardas, 2 casais de águias caçadeiras e 3 trigueirões por hectare. As soluções possíveis são muitas e as receitas são poucas.

O conflito é sintomático de uma política de conservação em que se confrontam valores, legítimos, de grupos sociais com necessidades diferentes. Os urbanos carecem de um espaço "natural" à medida das suas necessidades espirituais. A extinção de espécies e o desaparecimento de habitats é um relembrar constante de que a civilização caminha num sentido de ruptura com um passado de convivências, mais ou menos conflituosas, com os nossos parceiros biológicos de evolução. A questão colocada é: -"Quereremos nós viver num mundo simplificado e dominado apenas pelos nossos simbiontes (p. ex. cães, gatos, ovelhas, vacas e outros amigos) e competidores (p. ex. baratas, gafanhotos, ratazanas, moscas e outras criaturas que beneficiam dos desertos biológicos por nós criados)? Ou queremos nós encontrar uma harmonia entre o nosso desenvolvimento e a persistência de outras formas de vida no planeta? - Os rurais usam o campo como ganha pão. Logo, encaram este espaço numa óptica de produção de valores materiais mais do que espirituais. Não obstante, foram eles os responsáveis pelas paisagens que queremos preservar. Desta forma não é sem eles mas com eles que temos que pensar a política de conservação. Entremeio estão as gerações futuras. As que não opinam - porque não podem - mas que têm o direito de usufruir das mesmas opções de desenvolvimento material e espiritual que as gerações actuais. Para que tal aconteça temos de lhes legar um património biológico integro.

 
Na raiz da resolução deste conflito está o conceito de desenvolvimento sustentável. Na prática, tal implica uma forte intervenção dos organismos públicos; não obrigatoriamente como executores de políticas mas como mediadores e redistribuidores. A conservação da biodiversidade é um objectivo civilizacional. Esse objectivo tem um custo e esse custo tem de ser repartido de forma justa. O facto de Portugal ter 75% do território incluídos nos 1.4% do planeta necessários para conservar uma parte importante da biodiversidade mundial não implica que sejam os rurais portugueses a pagar a factura. O financiamento comunitário à gestão das áreas Natura 2000 é um passo importante no sentido de compensar os agricultores pelas eventuais perdas de rendimento e/ou oportunidades que poderão advir da classificação das suas propriedades. Outras formas de compensação (p. ex. benefícios fiscais, certificação de produtos "amigos da natureza") deverão ser estudadas por forma a corrigir a desigualdade entre agricultores sob regimes de conservação e os restantes. Desta forma talvez seja possível que, um dia, sejam os próprios agricultores a solicitar a classificação das suas propriedades como áreas de conservação. Nesse dia, as soluções técnicas que apontam para a necessidade de se gerirem 50-70% dos territórios nacionais com fins de conservação talvez sejam consideradas. Nesse dia a biodiversidade poderá "respirar fundo".


Bibliografia

(1)Pimm, S. e Lawton, J. (1998). Planning for biodiversity. Science 279: 2068-69.
(2)Soulé, M. e Sanjayan, M. (1998). Conservation targets: do they help? Science 279: 2060-61.
(3)Myers, N. et al. Biodiversity hotspots for conservation priorities. Nature 403: 853-58.
(4)Araújo, M. (1999). Distribution patterns of biodiversity and the design of a representative reserve network in Portugal. Diversity and Distributions 5: 151-63.
(5)Araújo, M. e Williams, P. (no prelo). Selecting areas for species persistence using occurrence data. Biological Conservation.
(6)Williams, P e Araújo, M. (submetido). Using probabilities of persistence to select important areas for biodiversity.

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