Serra de S. Macário - viagem ao Jardim da Pena

Manuel Nunes (texto) e Jorge Nunes (fotografia)
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O Jardim da Pena

Se há alturas em que “uma imagem vale mil palavras”, então esta é, sem dúvida, uma delas. O carreiro que parte da aldeia da Pena, não se demora muito pelos campos e vinhas do vale. Rapidamente, chega ao promontório entre as fragas, onde uma fenda natural nas rochas se abre para, subitamente, revelar um estreito e abrupto vale que corre encaixado ao longo do Ribeiro de Pena. E se as profundezas verdes e luxuriantes do vale constituem uma visão soberba e arrebatadora, as sonoridades que ecoam livres pelo bosque não o são menos: chilreios, flauteios, gorjeios, assobios, trineios, tudo serve para as inúmeras espécies de passeriformes que habitam a mata demarcarem territórios, intimidarem rivais ou atraírem eventuais parceiros. Por entre a cacofonia generalizada, porém, alguns intérpretes destacam-se dos demais. Distingui-los a “ouvido nu” não é fácil e requer algum treino, mas qualquer veterano de anteriores andanças ao ar livre, depressa associa o seu a seu dono: o gorjeio sonoro e admirável da carriça (Troglodytes troglodytes), o assobio aflautado do papa-figos (Oriolus oriolus), o doce trinado do pintassilgo (Carduelis carduelis) ou o chamamento áspero e característico da felosa-comum (Phylloscopus collybita).

 

Entretanto, o carreiro que parecia morrer junto aos rochedos, continua o seu percurso descendente mas agora sob a forma de uma imensa escadaria em ziguezague talhada na rocha. Mais do que a descida quase vertical ou o gorgolejo furioso e ruidoso do ribeiro lançando-se em cascata por entre a penedia, o que impressiona é sobretudo a frondosa mancha florestal que povoa este recanto húmido e abrigado. São às dezenas as espécies vegetais que aqui se podem observar. Desde logo saltam à vista os magníficos fetos (Asplenium onopteris, Asplenium billotii e Athyrium filix-femina) que crescem nos troncos das árvores, nas paredes rochosas ou no solo e que acompanham toda a descida. Depois, há os líquenes que pendem das árvores como cachos e que recobrem as superfícies rochosas com tons laranja e amarelo de grande beleza, sendo de destacar as espécies, Dimelaena oreina, Xanthoria parietina, Evernia sp. e Cladonia sp.. Por fim, temos os arbustos e as árvores. De todos os feitios, de todos os tamanhos, adornam e ensombram uma boa parte do percurso pelo “Jardim da Pena”. E se muitas espécies são discretas, ocupando os lugares mais recônditos do vale, como o azereiro (Prunus lusitanica), o abrunheiro-bravo (Prunus spinosa), o amieiro-negro (Frangula alnus) e o pilriteiro (Crataegus monogyna), algumas são enormes e corpulentas, como os carvalhos, os castanheiros ou os sobreiros (Quercus suber) quase desproporcionais a tão exíguo espaço; e outras ainda são estreitas, esguias e tão altas que dir-se-ía poderem quebrar com uma simples brisa, como acontece com o salgueiro (Salix alba), a tramazeira (Sorbus aucuparia), a bétula (Betula pubescens) ou a cerejeira-brava (Prunus avium). Todas juntas, contudo, formam uma cobertura verde de tal forma densa que os raios solares raramente tocam o solo, o que acaba por propiciar o habitat ideal às espécies faunísticas associadas a ambientes húmidos e sombrios, como os anfíbios. De resto, é bastante comum aos caminheiros vislumbrarem os saltos aflitos de uma rã-ibérica (Rana ibérica) procurando a segurança da água, ou encontrar larvas de tritão (Triturus boscai e Triturus marmoratus) nos pequenos açudes que se formaram ao longo do curso do ribeiro que seguimos durante 3 deliciosos quilómetros, sempre acompanhados pelo bosque que nunca nos deixa sair da sua sombra acolhedora. Mesmo quando uma velha azenha que ameaça ruir irrompe por entre o arvoredo, o bosque mantém o seu apertado abraço como que aconchegando a si o velho edifício e lembrando os tempos em que este carreiro era a única via de ligação entre as aldeias da Pena e de Covas do Rio. Hoje, porque íngreme e extenuante, já ninguém o percorre. Talvez por isso, a mata continue a existir, longe da cobiça que no passado devastou a floresta primitiva da serra.

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