Silves, a Xelb islâmica

Leonor de Almeida (texto) e José Romão (fotos)
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Silves é uma cidade que transpira história. Erguida sobre um vale fértil, é dominada pelo seu castelo, marca da ocupação árabe do território e de uma época ímpar de prosperidade. Mas há muito mais para conhecer desta cidade algarvia.

"Silves, oh! Xelb! Eras outrora um paraíso mas transformaram-te tiranos no fogo do Inferno. Foram injustos que não temeram o castigo do Senhor. Mas nenhuma coisa oculta é oculta para Alá."


Assilbia, poeta de Silves, séc. XIII.


Quem se aproxima pela estrada, depois de passar pela ribeira de Odelouca, vê ao longe um cabeço encimado de muralhas cor de rosa, a contrastar com o branco do casario envolvente: é o castelo de Silves, o maior da região, baluarte de uma das cidades mais importantes do Reino do Al-Faghar dos Almóadas e, posteriormente, do Algarve dos portugueses, após a segunda conquista da cidade, em 1242. Nos tempos de glória chegou a ter 30.000 habitantes. Alguns dos seus belos palácios tinham terraços de mármore. As ruas e os bazares regurgitavam de mercadores que vendiam preciosidades vindas do oriente. Em redor havia pomares e campos floridos. Sobre os seus esplendores escreveram Al-Mutamid e Ibn Ammar, dois dos maiores poetas árabes.

 
Fotografias de José Romão 

À medida que avançamos, a morfologia do terreno faz desaparecer do campo de visão, por momentos, toda a cidade amuralhada. Os aloendros que ladeiam a estrada são uma nota simpática a dar-nos as boas vindas. Subitamente, porém, estamos na rua principal, a rua Cândido dos Reis, que desemboca num largo junto às muralhas do castelo. Está calor e instintivamente encaminhamo-nos para a frescura de uma antiga adega transformada em café, ali mesmo no largo. Deparamos com um ambiente acolhedor, quase familiar. A D. Rosa é a proprietária. Transformou duas grandes salas de pé direito muito alto, num centro de convívio e de tertúlia, onde à noite se junta, obrigatoriamente, muita gente da terra. No Café das Arcadas as mesas e cadeiras de ferro têm um design próprio, feito à medida do gosto dos proprietários. Nas paredes são muitas as recordações de gente de todo o mundo que quis assinalar a sua passagem: aguarelas, mas também peças de cerâmica, a virgem negra de Czestochova, enviada por um padre polaco, e fotografias, um extraordinário conjunto fotográfico com monarcas de toda a Europa, a solenizar o ambiente kitsch. Envolvidos por este ambiente algo insólito, nada melhor do que avançar, em seguida, para os deliciosos bolinhos de amêndoa e ovos e acompanhá-los com uma amarguinha, a aguardente de amêndoa, tão característica das terras Algarvias. Lá fora, o calor continua a apertar, mas é atenuado pelo verde das muitas e frondosas árvores que enchem o pequeno largo.

 

Silves está afastada das rotas do Algarve turístico e ainda não há muita gente que queira apostar nesta velha urbe, que foi a " Bagdad do Ocidente". Resta o interior das muralhas, que mantêm as suas velhas características e cujas fachadas seculares são o seu certificado de nobreza. Ali pontifica o Museu Arqueológico Municipal, inaugurado em 1990, uma obra notável, pacientemente organizado pelo historiador Varela Gomes. Num magnífico espaço amplo e luminoso, construído à volta de um poço-cisterna árabe, foram dispostos, de uma forma inteligente e agradável de apreender, os achados arqueológicos desde a Idade do Bronze até 1249, o ano da reconquista da cidade por D. Sancho I. Através de uma gigantesca parede de vidro podemos ver o que resta da muralha almóada de Silves. Aqui respira-se a grandeza da Xelb dos séculos XII e XIII, quando "era opulenta em tesouros e formosa em construções", como escreveu Oliveira Martins. Foi também importante pólo dinamizador da poesia árabe - andaluza e o principal ponto de penetração da civilização árabe no que viria a ser o Portugal cristão. A memória das suas grandezas passadas persiste de tal modo no mundo muçulmano, que ainda hoje Silves se faz representar nos congressos das cidades islâmicas, como aconteceu em Teerão, em 1997.


Fotografias de José Romão 

Andar por Silves é, assim, contactar com vários períodos da História num pequeno espaço. Pode-se entrar nas muralhas pela Porta da Sé ou Almedina, uma magnífica arcada quadrangular de tijolo, brecha aberta na muralha. Tendo desaparecido a traça primitiva, guarda mesmo assim um encanto muito particular, talvez pela ineditismo da sua forma.

 

Depois da visita ao Museu, sobe-se pela Rua da Sé. Chega-se à velha catedral pelas pedras de calcário rosa que calcetam a rua. Salta à vista o contraste entre a pedra ruiva do portal ogival (o grés de Silves) e a cal branca da parede envolvente. O monumento tem três naves, também em tom rosa, com alguns túmulos bispais, um deles atribuído a D. Rodrigo da Cunha, bispo de Vila do Bispo, localidade que fica a dois passos de Sagres. Diz-se que a Sé foi construída sobre a mesquita moura, por ordem de Afonso X, o Sábio, rei de Castela e senhor do Algarve, segundo o direito feudal, uma questão que só ficaria resolvida a favor dos portugueses em 1253, graças à intervenção do papa Inocêncio IV. Foi Sé Catedral do Algarve até ao século XVI, altura em que a sede do bispado passou para Faro. Diz-se que o bispo se mudou para Faro, incomodado com a gente local que não ligava muito ao credo e que ao passar a delimitação do concelho de Silves, atirou fora as sandálias que pisaram aquele chão estéril.


Fotografias de José Romão 

O grés rosa acompanha-nos até chegar à alcáçova do Castelo, onde estão a ser feitos intensos trabalhos arqueológicos, que permitiram trazer à luz uma malha urbana construída pelos árabes, entre os séculos XI e XIII. E podem visitar-se também grandiosos silos subterrâneos, onde os habitantes de Xelb guardavam os seus cereais. Um percurso circular pelo caminho da ronda dá-nos a noção da implantação de Silves numa pequena colina rodeada de terras de cultivo. Lá ao longe é visível o dorso azulado da Serra de Monchique e também as curvas suaves das colinas do Enxerim. Deste local privilegiado de observação, uma outra cisterna é visível. E há também que apreciar o cheiro que vem do mar, que se mistura com o perfume da esteva. Mas se lançarmos um olhar sobre a cidade notaremos que está bastante degradada e a necessitar, eventualmente, de alguns fundos comunitários, a par de um bom plano de recuperação urbana.

 

De regresso ao centro deparamos com antiquários, tanto dentro, como fora das muralhas. Curiosamente, muitos são propriedade de cidadãos estrangeiros, sobretudo alemães. Os que vêm de fora são, por vezes, mais capazes de aproveitar as potencialidades das regiões onde se instalam, a que os "indígenas " já pouca importância dão.


Fotografias de José Romão 

Pelo fim de tarde passeie-se pelas ruas sem carros do centro da cidade. Numa rua fechada ao trânsito chama-nos a atenção um restaurante onde os comensais, de concha em punho, tiram o manjar de um enorme “panelão”. Cá fora anuncia-se a especialidade: grão com galo e sopa de "beldroegas". Também não é de desprezar a caldeirada de achigã. Quem quiser comprar vinhos não pode deixar de ir à garrafeira "Caixão à Cova". Depois desça, suavemente, a rua Policarpo Dias, até às margens do rio Arade, onde existem vários restaurantes de peixe. Enquanto janta pode ir meditando sobre os desníveis de desenvolvimento entre o litoral algarvio e o seu interior e, a propósito, observe na encosta em frente, sobranceira ao rio Arade, o que resta de um palacete que, dizem, tinha os tectos todos pintados a fresco, mas que hoje estão escondidos (e possivelmente irremediavelmente perdidos) pela pintura recente de alguém que não deu grande valor a estas coisas do património. Sobre este rio sobrevive ainda uma velha ponte romana de cinco arcos ogivais.

 

O rio Arade permitiu uma intensa actividade comercial, pois as barcaças subiam até às portas da cidade, carregadas de mercadoria para os bazares. Este movimento no rio manteve-se até à época dos descobrimentos. Mas, ao fim do comércio com o Norte de África, consequência da conquista cristã, veio juntar-se o assoreamento gradual do rio. As águas estagnadas trouxeram as febres, os navios ficavam-se por Portimão e foi a decadência. Mais tarde, o terramoto de 1755 provocou danos irreparáveis no património da cidade. No entanto, na segunda metade do séc. XIX, a indústria corticeira fez crescer de novo Silves, a nível económico e urbanístico. Nesses tempos, as barcaças levavam a cortiça até ao porto de Portimão, no estuário do rio. No princípio do século XX, com a abertura de estradas e a chegada do caminho de ferro, acentuou-se a recuperação da prosperidade perdida de Silves, mas sem nunca atingir a importância económica que gozou no período de ocupação árabe.


Fotografias de José Romão

OUTROS PONTOS DE INTERESSE:

. Porto de Lagos a 10 km de Silves - antigo porto fluvial da ribeira de Odelouca. Fazia a distribuição de cereais e de todos os mantimentos até ao século XIV.

 

. Ribeira de Odelouca - a ribeira da lenda da paixão de uma princesa moura por um príncipe cristão. Contra a vontade do pai, a princesa segue o príncipe e fogem para a ribeira. Já se sabe que estas histórias de príncipes e de princesas nem sempre acabam bem. E a pobre princesa moura, na ânsia de alcançar o seu amado, cai na ribeira e afoga-se. O pai, desesperado, chama-a: "Oh! de louca!..."

. Teatro Gregório Mascarenhas - teatro de estilo italiano, de meados do século XIX. Tem o nome do seu arquitecto, que foi também o construtor do edifício da Câmara Municipal de Silves. 
 
. Cruz de Portugal - cruzeiro quinhentista de calcário branco. Representa Cristo crucificado e a descida da cruz. Fica na saída para S. Bartolomeu de Messines.

. Igreja da Misericórdia - templo quinhentista com traços manuelinos bem patentes na janela lateral.

. Ermida de Nossa Senhora dos Mártires - fundada no século XII, nada resta da traça primitiva. A fachada é setecentista. Estão aqui sepultados os cruzados que morreram ao auxiliar D. Sancho I na primeira tomada de Silves aos árabes, em 1189.

. Pelourinho

. Museu Municipal

. Fabrica do Inglês - antiga fábrica de cortiça, agora transformada em Museu da Cortiça, complexo de restaurantes, e esplanada onde decorrem espectáculos, à noite, incluindo projecções laser sobre água.

 

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